Dedico estas linhas a todos os meus amigos que se foram deste mundo velho, tão velho quanto a sombra do Eterno, deixando-me com a impressão de que viver plena e longamente a vida é sentir nas próprias fibras a intensidade daquilo que os outros não sentiram, como por exemplo, as dores das perdas, as angústias das incertezas e os prazeres de viver que só em vida podemos sentir. (Ruy Câmara)
Hoje eu acordei propenso a começar o dia fazendo uma despropositada reflexão sobre a vida. Raramente consigo pensar na vida em separado das circunstâncias que me afligem a cada vez que tomo consciência da complexidade de elaborar nesse terreno. Começar o dia pensando na vida, parece coisa de quem não tem algo mais produtivo com o que se ocupar. Contudo, sem ideias e sem palavras as coisas reais, os lugares reais e as pessoas reais perderiam sua razão de ser e, pois, perderiam o seu próprio sentido de existência.
Agora mesmo começo a lembrar das quatro e únicas vezes em que ousei repensar o futuro e, consequentemente, em mudar os rumos da minha vida. A primeira vez ocorreu quando me vi compelido a ignorar uma vocação real para seguir uma carreira socialmente promissora que supostamente me asseguraria uma velhice gloriosa e tranquila. A segunda vez foi quando me vi forçado a deixar o lar paterno para cumprir um compromisso matrimonial que sabidamente não resistiria ao primeiro duelo de temperamentos. A terceira vez foi quando uma tempestade cambial me fez prisioneiro das armadilhas dos sistemas financeiros e, por excesso de escrúpulos, decidi me libertar de um cárcere empresarial que prometia me anular por toda a restante vida. A quarta e última vez que ousei refletir sobre o futuro foi precisamente quando perdi minha Lia (aos dois aninhos) e comecei a garimpar no oco da minha existência em busca do que ainda poderia restar de esperanças para seguir a minha real vocação.
No momento crucial das incertezas e indecisões recorri ao poeta oracular, Gerardo Mello Mourão, meu mestre e amigo, que de longe me soprou uma utopia impossível de imaginar: Ou Dante ou nada.Quinze anos se passaram para que eu pudesse compreender verdadeiramente o significado das palavras do mestre Gerado num momento angustiante e incerto. E só agora ouso admitir como foi difícil começar a pôr em prática aquele sopro de genialidade.Parece que a vida é um eterno recomeçar. Pior ainda é a sensação de recomeçar do nada, como por exemplo, a partir de uma página em branco, tendo em mente a máxima: ou Dante ou nada.
Ora, uma página em branco é o vazio absoluto e nada é mais absoluto do que o vazio. Contudo, no vazio da página em branco comporta um ser com toda a sua carga de aflições e ideias. Parece que o enigma do ser é o enigma de uma ideia aflita que se materializa num gesto genesíaco e criador da vida e do existir de tudo e de todos. Do ângulo em me situo nesta manhã, ocorreu pensar que são as palavras que preenchem o vazio das ideias, tanto que já não sei se estou confortavelmente abrigado ou severamente oprimido numa armadilha que me aprisiona ao longo de minha vida. Do ponto de vista da lógica vigente esta reflexão parece destituída de sentido. Mas do ponto real foi assim que recomecei uma nova vida aos 40 anos.
Dessa vida nova eu entendo um pouco porque sobrevivi a uma vida velha que me levaria o supremo desânimo. Hoje, com um pouco mais de experiência vivida, eu diria ao leitor: se alguma vez o abutre do desânimo tentar bater asas sobre você, pedradas nele. Não se deixe abater nunca.