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Charles Baudelaire

Charles BaudelaireCharles-Pierre Baudelaire nasceu em Paris no dia 9 de abril de 1821 e morreu de exageros e vícios ao 46 anos, na noite outonal de 31 de agosto de 1867, em Paris.  

Baudelaire é um dos precursores do simbolismo e reconhecido mundialmente como fundador da tradição moderna em poesia e sua obra influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.

Baudelaire estudou no Colégio Real de Lyon e no Lycée Louis-le-Grand, de onde foi expulso por haver se recusado a mostrar ao professor um bilhete que lhe fora passado por um colega de sala. Diante do diretor Baudelaire engoliu o bilhete e cavou a sua expulsão.  

Em 1840 Baudelaire foi enviado pelo padrasto, General Aupick, para uma temporada na Índia, mas nunca chegou ao destino. Desembarcou às escondidas na ilha da Reunião e retornou a Paris.

Atingindo a maioridade, ganhou a posse da herança do pai. Por dois anos viveu na boemia em companhia de Jeanne Duval, sua musa, a quem chamava de “o demônio de Santo Domingo”. Em 1844 sua mãe entrou na justiça, acusando-o de incapaz e então sua herança passou para controle de um notário.

Em 1857 é lançado As flores do mal contendo 100 poemas. O autor foi acusado, no mesmo ano, pela justiça, de ultrajar a moral pública. Os exemplares foram apreendidos e Baudelaire foi condenado a pagar uma multa de 300 francos e a editora pagou 100 francos. As Flores do MalEssa censura se deveu a apenas seis poemas do livro. Baudelaire nunca aceitou a sentença e escreve seis novos poemas, “mais belos que os suprimidos”, segundo ele.

Apesar da má fama, Baudelaire tentou ingressar na Academia Francesa, mas a sua inscrição foi rejeitada. Há divergência entre os investigadores sobre a principal razão pela qual Baudelaire tentou isso. Uns dizem ele queria se reabilitar aos olhos da mãe (que dessa forma lhe daria mais dinheiro), e outros dizem que ele queria se reabilitar com o público em geral, que via suas obras com maus olhos em função das duras críticas que recebia da burguesia.

 

Carta Ficcional de Célestine-Jacquette Davezac, mãe de Isidore Ducasse (o Conde de Lautréamont) enviada ao poeta Charles Baudelaire momento antes de suicidar-se na noite natalina de 24 de dembro de 1847 

Montevidéu, noite de 23 de dezembro de 1847.

Meu querido poeta, Baudelaire:

Que estas linhas nunca cheguem em tuas mãos, nunca. A Voz que aqui se expressa é outra, que não é só minha, mas parte da tua, que me cala, pois lendo os teus poemas posso ouvir os gritos do teu coração. O mais que for entendido aqui será por acréscimo dos teus juízos. Nem todo erro pode ser corrigido a tempo, do mesmo modo nem toda alucinação é apenas alucinação. Se eu estivesse sob o comando de mim mesma, teria evitado ler os teus poemas en­charcando-me de vinho ou influenciada por substâncias digeridas das papoulas opiáceas. E tudo isso, por quê? Lancei-me numa experiência extremamente difícil e perigosa, e descobri que as pétalas mais belas e suaves não são inofensivas como se presume num simples olhar. O mesmo vale para dois dos teus poemas, os mais belos que já li. Que tal batizá-los de Les fleurs du mal? Desculpe-me pela intromissão inoportuna. Mas tentarei me expressar melhor a respeito das flores, das rosas das alvoradas, que excitam os românticos para depois afogá-los em sonhos e arrependimentos tardios. Porém, neste momento, sinto-me tão depressiva que não consigo lembrar das minhas experiências com as amarílis, tão enaltecidas por Virgílio. Elas escondem nos traços rubros das plumas brancas e macias o poder da alucinação beladonal e o terror das trágicas descobertas. Que tema miserável. Prefiro falar das clematites e dedaleiras, que desabrocham nos cara­manchões da Grécia, França e Inglaterra. Estas, se ingeridas com vinho tinto, podem revelar que a razão caminha no rastro da loucura. Como se percebe, continuo muito hesitante e, neste momento de devoração, nada me ocorre senão pelo avesso dos sentidos. Mas em desobediência aos juízos formulados por mim, tentarei burlar as minhas limitações para apreender nas entrelinhas dos teus poemas floridos e venenosos algo que se fecha no teu anonimato. Ora, nada melhor do que matar o tempo lendo teus poemas e mastigando algumas pétalas. Farei isso amanhã, antes da grande ceia. Confesso que não estou interessada em ouvir os sinos alucinantes das dedaleiras colhidas no pomar, nem quero sentir o presságio da morte escondido nas pétalas de beladona perfumadas com amarílis. Tampouco pretendo gozar o efeito sonífero das papoulas opiáceas, muito menos lembrar dos efeitos mágicos e das cefaléias propiciadas pelas rosas-de-cem-folhas que os vitorianos costumavam ingerir antes do amor. E por falar de amor, acredite-me, sinto-me tão só, tão desiludida, tão desprezada, que na floração das minhas idéias só consigo antever um resultado trágico. É como se o meu futuro se resumisse em avançar ou recuar. Adeus, poeta. Da tua admiradora, Célestine.

Os últimos momentos de Baudelaire estão narrados no romance Cantos de Outono. 

Amanhece o dia 30 de agosto de 1867, uma sexta-feira ensolarada e o dia irá transcorrer em meio a muitas expectativas e silêncios. Aos quarenta e seis anos, desfigurado sobre um leito na casa de saúde, Charles Baudelaire mantém-se estático, desatento a tudo diante da fatalidade. A senhora Paul Meurice já não alimenta a expectativa de vê-lo caminhar pensativo na ilha de Saint-Louis, onde era facilmente identificado por suas toaletes extravagantes e pelo chapéu que usava para esconder a calvície precoce ou para acentuar a parca cabeleira na parte de trás da cabeça, onde os fios se alvoroçavam na dobra do pescoço. No estado em que se encontra, parece estar pronto para desvelar o temido mistério. No entanto, os soníferos à base de ópio, quinino, valeriana, beladona e dedaleira já não demonstram eficiência, tanto que a simples presença do padre o arrebata de um sono profundo, afetado de sonhos sucessivos. Da sua boca o único som que se ouve é: “Não, não, não, não.” “Seria uma recusa aos fármacos ou à extrema-unção?”, indaga-se o médico, que como o padre, também se esforça para adivinhar o que ele sente.

Só os mais íntimos o assistem em silêncio. Seus amigos, Asselineau, Hertzel, De Lisle, Champfleury, Nadar, Artur Stevens, Troubat, os jovens Paul Verlaine, Stéphane Mallarmé e mais uma dúzia de intelectuais que freqüentavam a casa editorial de Poulet-Malassis e De Broise, na esquina da passagem de Mìres com a rua Richelieu, quase sempre os mesmos que rotineiramente o visitam, não têm mais esperanças de vê-lo esboçar expressões cínicas para intrigar os burgueses incultos nos cafés e ateliês de Paris. Por várias vezes o nome do editor Poulet-Malassis é lembrado por todos, que lamentam profundamente a sua ausência, mas entendem que ele seguramente seria preso antes mesmo do trem chegar em Bavay, na fronteira da Bélgica com a França.

Mas o poeta, apesar das aparentes derrotas sobre a afasia motora, ainda consegue se queixar de demasiado cansaço e insinua que só estará pronto para virar a última página de um livro trágico quando sua mãe vier beijá-lo no leito, como fazia nos idos tempos em que a família levava uma vida monótona, mas cheia de harmonia ao lado do ex-abade François Baudelaire, aquele homem barbudo, velho e enrugado, de sobrancelhas espessas e grisalhas, que tinha o hábito nostálgico de varar a noite retocando telas ou restaurando esculturas. Pela primeira vez em muitos anos, seu pai, que tudo sabia sobre o mundo e seus problemas, começa a ser lembrado pelo filho enfermo, que novamente dorme e deixa o campo livre para o padre exorcizar os demônios que o atormentam no leito de morte. Ao sentir o pouso suave de uma mão imensa e áspera en­cimando o seu rosto e também os velhos cheiros de tinta no ar, Baudelaire parece reviver os dias inesquecíveis em que caminhava com o pai nos jardins do Luxemburgo. Seu rosto torna-se plácido e risonho ao toque dessa mão, sempre pronta para uma carícia. É, sem dúvida, a melhor expressão que tem demonstrado nesses últimos meses. No íntimo é como se recebesse um afago de boa-noite em pleno alvorecer. Mas a mão que o acaricia é da senhora Paul Meurice, que nesse delírio é confundida com Jeanne Duval, a sacripanta musa do poeta, por quem fora muitas vezes traído, mas não tanto quanto se sentiu traído pela própria mãe. Há no semblante do enfermo uma inquietação recôndita ao relembrá-la jovem, cheia de desejos carnais, encoberta apenas por um casabeque de flanela escarlate no ombro, desfilando lépida como uma felina, a exalar na atmosfera do quarto fechado um cheiro muito forte, próprio da sua negritude africana. Quiçá Baudelaire esteja mesmo sonhando com a exuberância de um par de seios a pino, bicos rijos, brilhantes de suor, como de fato os tinha aquela mulher esbelta, de pisar aligeirado, possuidora de ancas possantes e salientes que, num momento de fraqueza ou delírio, também possuiu a mente de Isidore Ducasse, lembremo-nos disso, quando ele estava recluso ao quarto e lá permaneceu numa atitude de esfinge, submetido a uma daquelas inaceitáveis crises de vontade e liberdade que o obrigava a ir com freqüência à janela para desafogar-se, e num dado instante começou a escrever num influxo que escorria tão livremente a ponto de sufocar o leitor, que como o narrador, também não sentiu a falta dos símbolos ortográficos, notadamente do ponto e da vírgula, que nem sempre fazem falta, principalmente quando o delírio ultrapassa o caráter literário e se torna real, tão real quanto a presença inesperada daquela deusa negra, incorpórea aos olhos incrédulos de Isidore Ducasse, que súbito se viu encantado pela fixidez penetrante e pela tremura do corpo da salamandra musa, apelidada pelos gigolôs de senhorita Lemer, o demônio da ilha de São Domingos, isso porque, quando era vista no bordel na alta noite, enfeitiçava a todos com seu olhar portador de um brilho incomum, um brilho que atraía pelo magnetismo dos pensamentos libertinos e pela ânsia que ela tinha de trocar o calor da sua negritude africana com a palidez fria da epiderme de um poeta atormentado. Mas tudo isso é parte de um longo delírio literário que empurrou Isidore Ducasse para dentro da própria narrativa, mas não nos pergunte o leitor como isso foi possível, nem como se findarão as musas que inspiraram tantas vezes os poetas, muito menos se a senhorita Lemer será capaz de lembrar das incontáveis vezes que submeteu o amante enfermo aos seus prazeres malvados e aos sonhos alucinados de amor, ópio e ódio. Nesse instante a expressão facial de Baudelaire já não é mais de prazer nem de dor. Talvez seja decorrente dos receios naturais de uma vingança da consciência sobre os frágeis sentidos, ou mesmo o remorso tardio por haver deixado Jeanne Duval impregnada de ilusões e das mazelas de um amor infiel, promíscuo e prazeroso, nele nutrido pelo ódio, nela por necessidade, a mesma necessidade que a empurra agora para dentro de um asilo, onde viverá até o último dia, totalmente louca e cega.

“Quantos mistérios se ocultam no ato de morrer?”, indaga-se Isidore Ducasse, que na chegada faz um gesto solene ao ver o ídolo deitado com as pálpebras entreabertas sobre um olhar espiritualizado, movendo apenas os lábios retorcidos, como se essa impassividade de cadáver fosse o último recurso que o faz suportar resignadamente o incômodo das feridas nas costas, nas nádegas e as complicações renais e pulmonares. Nenhuma posição no leito é de conforto, mas a carne em ruínas parece resistir melhor ao caos do que a sua consciência, aparentemente obstruída pelo silêncio que se prolonga em todos os olhares com a saída do padre. Apesar de tudo, o enfermo ainda consegue ouvir Paul Verlaine, que acabara de sentar ao seu lado para ler um trecho de “O quarto duplo”, à Théophile Gautier, que por força das circunstâncias políticas, continua retido em Genebra. A voz trêmula do jovem literato ecoa após um breve silêncio: “A que demônio benévolo devo eu estar assim cercado de mistério, de silêncio, de paz e de perfumes? Ó beatitude! Aquilo a que em geral chamamos vida nada tem de comum, mesmo na mais feliz das suas expressões, como esta vida suprema que agora conheço e que saboreio minuto a minuto, segundo a segundo! Não! Já não há minutos, já não há segundos! O tempo desapareceu. É a eternidade que reina, uma eternidade feita de delícias!”

O calor causticante e as palavras incandescentes de Paul Verlaine invadem os aposentos para apressar a decisão de quem está prestes a se desvencilhar dos turbilhões caóticos do mundo opaco em que se encontra, mas que, por uma razão indesvelável, ainda parece rir das próprias agonias, e também desses olhares ocio­sos, banhados de zelo, os quais, de tanta comoção, parecem crispá-lo de energias rígidas, deprimidas, tanto que o enfermo já não tem de onde tirar forças para enfrentar as turbulências existenciais e o vazio que supomos conter em sua alma. Contudo, ele enfrenta as ameaças alucinantes diante do êxtase inexplicável, preso ao corpo pálido-esverdeado, e ainda ousa o prazer de um devaneio no exato instante em que seus sentidos se afinam com a orquestra celestial e entra em sintonia mundana com a partitura Tannhäuser, do repertório sinfônico do seu amigo Wagner, tocada em sua intenção pela senhora Paul Meurice. As notas musicais extraídas com suavidade das mãos delicadas da bela e exímia pianista agem sobre o moribundo como um bálsamo benigno, um ungüento retirado de uma fonte inesgotável de amor, de cujo poder pacificador supera muitas vezes o da ingestão em jejum de cânhamo egípcio ou india­no, cuja sensação de hilaridade, produzirá nas próximas horas uma felicidade ébria, absoluta, ou algo mais poderoso com o qual a morte ganhará uma conotação egocêntrica, em que todos os esforços psíquicos só servirão para acirrar o conflito da desincompatibilização carne-espírito, obviamente depois de sugerir uma alegria enlanguescedora, depois de prover uma felicidade tão frágil quanto o fio de vida que a liga às concepções mais tênues­ de um mundo incompreensível a um espírito circunspeto, um espírito que está atenazado na fronteira inferior da existência por um suspiro carregado de ironia e esperança, a requerer, de um lado, a piedade dos amigos, e do outro, a esperada benevolência da Criação.

Como nos velhos tempos em que o haxixe inebriava os seus pesadelos, nesse quarto sufocante, Baudelaire vê os amigos contemplá-lo com olhos e bocas desmedidamente aumentados e suas vozes a produzirem sons gigantescos, como se cada um acalantasse o secreto desejo de vê-lo poupado na próxima agonia. Mas essas fantasias solitárias parecem durar uma eternidade, talvez porque não lhe apraz chegar à beatitude por meios artificiais, como a beatitude dos loucos, que recebem uma calma injetável, de onde eclodem sonhos dan­tescos, a em­briaguez misteriosa, os ideais sem nexo, até o dia em que se libertarão dos sonhos sádicos das almas acrisoladas por etéreos soníferos, ou pelos mistérios que virão a possuí-los, como a aurora boreal possui a beleza de si mesma diante do esplendor de um ser contemplativo, que surgirá no momento em que tudo parece se extinguir.

Paris já está dormindo com as suas glórias passadas, mas no quarto onde estamos, a noite de vigília será longa. Os amigos de Baudelaire estão admirados com a solidariedade desse jovem respeitoso, gentil e clássico nas formas de expressar-se. Mas essa admiração logo declina quando Isidore Ducasse, ainda um mero desconhecido, diz com atrevimento inusitado que pretende corrigir os poemas de Baudelaire para publicá-los postumamente. “Quem esse louco pensa que é?”, perguntam-se. Na manhã seguinte, para quem novamente se aproxima do leito, fica evidente uma proibição surda que o impede de comentar sobre o quanto é difícil a hora decisiva. Mas Baudelaire, um indefeso crônico, mantém-se impávido nesse instante singular, e parece retirar da música a energia amena de uma prece benigna, que brota da alma da senhora Paul Meurice, como se brotasse de um Deus majestoso que não cobra servidão aos vencidos no Armagedom. Como num passo de dança, as alegrias que povoam repentinamente os seus pensamentos, se entrelaçam com as convicções de que é verdadeiramente amado. Sua ­consciência se inunda de recordações e viaja nas asas dos ventos proféticos, acom­panhando o ritmo harmonioso que invade o seu corpo, palco de uma luta horrenda, extenuada. Nesses instantes lentos, os acordes finais duram como a eternidade, ao certo, a categoria mais abrangente da totalidade. É provável que ao final dessa luta ele possa ouvir de si mesmo o que há dias vinha tentando dizer: “Enfim, enfim, eu amava a minha mãe, e por amá-la tanto, tornei-me o mais enigmático dos édipos, ou talvez um dândi precoce.”

Súbito, o ambiente fica ainda mais austero com a chegada inesperada da senhora Caroline Aupick, que entra no quarto amparada por Aimée, sua dama de companhia. Ao ver o filho afogado nesses espasmos silentes, a pobre mãe parece corrompida a acreditar que o Pai celeste lhe dará um acréscimo me­tafísico, um acréscimo precipuamente hábil, isolado e passivo de equívocos, mesmo tendo a certeza de que a morte é concreta, e não derivada de um emaranhado de possibilidades. “Deus, por que não me poupaste antes? Estarei condenada a viver para sempre? O que fiz para merecer tamanho sofrimento?”, pergunta-se, não exatamente com essas palavras, mas Aimée entende que é sobre isso que ela pensa ao abraçar o que resta do filho, uma carcaça de ossos doentes, tal como a dela, visivelmente afrouxada numa pele densa e fria, de onde exala o cheiro inconfundível da morte. Aturdida pela ausência de um milagre, Caroline Aupick parece adivinhar que é tarde, muito tarde, e o filho já não percebe nada diante de si, exceto uns oásis que supõe existir, mas são tão demasiado vazios quanto os seus sentimentos mais medíocres. Talvez não sinta que é beijado pela mãe ou que é enlevado por uma sinfonia delirante, mas quem a tudo isso assiste, sabe que é chegada a hora dele sair desse mundo ermo, onde as visões estar­re­cedoras do suplício humano são cada vez mais vitoriosas, mas que, apesar de tudo, não são suficientemente legítimas para exterminar o lado doce de uma vida que se extingue.

Não é da índole de Isidore Ducasse agir com frieza e ao mesmo tempo com rudeza, quando crava a unha no calendário e arranca o dia 31 de agosto de 1867. Alguém poderá se surpreender com esse gesto brusco e aparentemente sem sentido, mas nós não, que sabemos se tratar de uma associação mnemônica para nunca esquecer desse sábado causticante. Mais surpreso deve estar ele próprio por não se sentir consternado com a morte do ídolo, afinal, numa roda de proeminentes autores, raros são os que se abatem com a tragédia alheia, tanto que somente uns dois ou três irão revelar o que representa para si esse que, mesmo estando morto, continuará existindo por todos os séculos.

Na edição de domingo de Le Figaro, numa dessas páginas inexpressivas, aparece uma nota fúnebre convidando os parisienses para assistirem à missa de corpo presente de Baudelaire, a ser celebrada na igreja Saint-Honoré-d’Eylau, de onde o féretro seguirá para o cemitério Montparnasse. Mas a notícia não causa o mesmo impacto que teria provocado há três meses. Quase não comove a sociedade literária de Paris. Nenhum representante da Academia Francesa está presente ao velório e nem mesmo o ministro da Instrução Pública lembra de enviar as condolências. Paul Verlaine, percebendo que o tempo está mudando bruscamente, comenta entre amigos que Baudelaire está dando trabalho até mesmo morto. “Nosso poeta só descerá à vala dos justos quando Paris começar a sentir os seus fortes odores”, ironiza Isidore Ducasse.

Se for um banal fenômeno atmosférico ou circunstância criada pela Providência, não sabemos, mas é intrigante que nessa tarde de domingo, enquanto o pároco apressa o rito para evitar que o calor acelere a putrefação do cadáver, uma nuvem escura apareça no céu para apagar a cidade. A hipótese de um eclipse desmorona no instante em que começa a chover torrencialmente. É nítido o constrangimento geral quando o ofício de encomenda acaba e ninguém se encaminha para as alças do caixão. Mais aflito está o pároco, que precisa trancar sua igreja antes que algum anarquista reivindique um espaço sagrado para acolher os restos de um poeta maldito. Preocupada com o sumiço das pessoas após a cerimônia e com o que dirão as más línguas sobre a sinistra tempestade, a senhora Paul Meurice pede a Asselineau que averigúe o que se passa lá fora e se o carro fúnebre está em posição. Em seguida vai ao encontro do pároco e lhe pergunta para que tanta pressa em apagar as luzes. Isidore Ducasse solta a alça do esquife ao perceber que a senhora Caroline está preste a ter um ataque de nervos quando Asselineau retorna com a notícia de uma inesperada tempestade de ventos outonais. O agente funerário, que fazia o serviço de acólito durante a eucaristia, recebe um aviso de que o Montparnasse está debaixo de um dilúvio. “E agora, o que faremos?”, indagam-se uns aos outros. Vendo os apelos do pároco a uma dúzia de gatos pingados para que retirem o esquife do altar, a senhora Caroline Aupick arranca o véu negro do rosto e reage: “Padre, quando essa maldita tempestade passar, prometo tirar o meu filho daqui.” “Senhora Caroline Aupick, só estou tentando ajudar.” “Agradeço a ajuda, mas não posso consentir que ponham meu filho numa vala de lama. Seria desumanidade.” O pároco exaspera-se, mas ao ser lembrado pelo agente funerário de que aquela senhora é a viúva do grande general Aupick e que tem posses suficientes para comprar uma tumba para o filho em qualquer igreja da França, logo retira a máscara de bondade e, num reflexo de dignidade, anuncia que o sepultamento está adiado para a melhor hora do dia seguinte.

Nessa segunda-feira, apesar do mau tempo, um renque de admiradores do poeta se dispõe a engrossar o cortejo que vai saindo da igreja logo após a missa das almas. Mas como era esperado, os fortes odores do defunto logo afugentam o já reduzido séquito. Só um punhado de solidários se dispõe a acompanhar o féretro até o jazigo do general Aupick, onde, padrasto e enteado, outrora ferrenhos rivais, como que ironizados pelas circunstâncias criadas, terão de se resolver no plano dos mistérios. A senhora Paul Meurice, que nessas alturas quase não se sustém de pé, pede permissão à senhora Caroline Aupick e faculta a palavra a Charles Asselineau, que inicia uma brevíssima saudação ao morto. Quando ele termina, o tempo se torna outra vez ameaçador e alguns amigos já não estão mais presentes. Preocupado com a chuva e mais ainda em salvar uma elegia a Baudelaire, Isidore Ducasse bebe uns goles da mistura de aguardente de uva com orvalho de pétalas adoçado com açúcar de beterraba, quebra o protocolo e improvisa um discurso. “Reconheço que estamos exaustos, mas prometo ser breve como esses relâmpagos.” Faz uma pausa solene enquanto os coveiros preparam a descida do esquife. Em seguida ele olha para o epitáfio do general Aupick, adianta-se até a borda do sepulcro e diz: “Permita a palavra, meu conspícuo mestre, se é que tu me escutas o íntimo, já que só o íntimo é capaz de traduzir a minha melancolia diante da fatalidade, esse estranho poder que vive a nos contrariar. Como bem disseste um dia, para espanto dos amantes do delírio, um bom autor já tem em vista sua última linha quando escreve a primeira. Portanto, ele pode começar sua obra pelo fim e trabalhar, quando lhe agradar, em qualquer parte. É pois hora de recomeçar uma nova obra pelo fim, talvez o mais lícito e não menos desejado do que um poema perfumado de flores exóticas, por onde a tua essência flui com uma potência misteriosa que se entrecruza com o imperceptível e com o que aparentemente inexiste aos olhos da ciência e da moral. Não sabemos se é essa espécie de instinto secreto que nos faz considerar que a sede insaciável de viver é o que nos opõe ao ignoto. Seria a finitude uma suposição, o nada absoluto para onde tudo converge, ou um ponto onde se perpetua a imortalidade das essências? Ide, poeta, espargindo o perfume das tuas flores mais suaves e quem sabe a tua luz desvele para nós o que está por detrás desse panorama que a nossa imaginação não consegue alcançar.”

Tão logo Isidore Ducasse lança o primeiro punhado de terra sobre o esquife do mestre, as ventanias começam a desfolhar as árvores já quase nuas e a soprar os túmulos encharcados. A chuva pára e os trovões silenciam bruscamente. Só o silêncio morto no espaço parece anunciar a chegada desse calor outonal, ou da hora mística de um encontro soturno, um momento singular, impróprio para testemunhas desse mundo. Mal os coveiros colocam a campa sobre o sepulcro do poeta, os ventos se acalmam, as nuvens se desfazem e o sol reaparece já quase exaurido, pacificando o firmamento com uma palidez con­soladora. Próximo ao portão já fechado, encimando o tronco de uma velha castanheira, firmam-se as garras de um hematófago solitário, que parece lamentar algo incompreensível. De longe, fechado no abraço das próprias asas, parece um pêndulo negro à procura de abrigo, ou do desabrigo que o mantém indeciso entre continuar ali parado, ou oscilando até cair no solo firme. Já é noite quando Isidore Ducasse se livra dessas visões, escala o fuste de uma coluna alta e grossa, ultrapassa a muralha de pedra e se retira calmamente do Montparnasse. No semblante, só uma idéia: dar asas a Maldoror.

Fragmento do Capítulo 9 de Cantos de Outono, o Romance da Vida de Lautréamont, sobre Baudelaire

Intrigado com o estranho episódio no qual os dois experientes mestres acabaram submetidos às astúcias de um pubescente literato, tão logo chega a Paris o banqueiro Darasse vai procurar inteirar-se com os livreiros, antiquários, pintores, musicistas e intelectuais sobre o autor d’As flores do mal. Nos primeiros contatos, assim que a sua intenção é percebida, o gerente do Café Riche, interessado em conquistar o freguês, logo trata de encobrir as desconfianças naturais e discriminatórias do ambiente, advertindo-o para que averigue bem entre os intelectuais, a maioria de orientação marxista, quem sentaria à mesa com um capitalista que também tem a virtude de apreciar bons vinhos. “Particularmente acho admirável o excesso de sensibilidade desses senhores. São convencidos de que só eles conhecem a fundo o problema coletivo, embora desconheçam o essencial, que é o indivíduo, por isso são incapazes de negar certas premissas. Veja como alguns parecem histéricos ou mesmo cômicos quando desferem com rudeza e bravura um ataque contra os proprietários. Sequer se reconhecem como membros da elite intelectual, que é bem mais excludente do que a elite burguesa”, retruca o banqueiro ao notar o olhar iracundo de um sujeito ao seu lado. Habituado a ouvir imprecações dos anarquistas contra os socialistas, desses contra os burgueses e aristocratas, e desses últimos, contra os grevistas insuflados pelas idéias anarquistas de Bakunin, Darasse compreende perfeitamente por que um tomador de ópio, desde que disponha de uns trocados no bolso para pagar o próprio consumo, é mais bem recebido nesses cenáculos do que um agiota.

Um poeta fracassado que vem se dando bem no jornalismo depois que escreveu, “se eu fosse o imperador, baixaria o seguinte decreto: que ninguém leia num bistrô de Paris algo escrito ou transcrito por Baudelaire e dele não se torne vizinho a menos de quatro mesas”, aproxima-se do banqueiro Darasse e diz: “Cuidado ao fazer perguntas. Nesses ambientes falaciosos, onde a vulgata marxista é o meio viático das euforias e depressões intelectuais, qualquer confabulação pode rapidamente se desviar para as evasivas e se transformar em manjados protestos sociais e, pelo que presumo, devem ser enervantes para alguém como o senhor, que está na posição de constrangedor.” Obviamente que na superficialidade, cada um tem a seu modo um comentário desairoso a respeito de Baudelaire, não só dele, mas sobre qualquer outro que ouse aparecer nas páginas dos jornais como poeta. Um artigo publicado em Le Figaro anos atrás, fê-lo ciente de que As flores do mal é, em síntese, a digressão da literatura francesa, e Baudelaire é um poeta decadente, que ultraja a dignidade da pátria.

Toda verdade por si mesma é duvidosa e carece de um fundamento sólido, sabe disso o banqueiro Darasse, que por profissão, habituou-se a preparar longos dossiês sobre contrabandistas, investidores, produtores culturais, homens públicos e empresas mercantis. Contudo não imaginou que na comunidade intelectual lato sensu os fluxos de aspirações individuais, o esnobismo, a hipocrisia, a inveja, o joguete de vaidades, a insinceridade e o trocadilho delator das línguas ferinas, é uma tradição permanente que termina em deliberada provocação ao bom senso de quem, em meio a isso, se supõe emancipado. As informações sobre Baudelaire são controvertidas e vão se repetindo no dia-a-dia, ora porque dele se ouviu dizer, ora porque se o que disseram é insuficiente, convém mesmo que se invente uma mentira, um falso juízo, um acréscimo leviano, uma incoerência que retransmita à outra ainda mais danosa, e é natural que assim ocorra, a leviandade da alma é a mesma dos sentidos, porque está pactuado e confusamente aceito que o intelectual mais astuto é sempre o mais omisso, o mais mimético, o mais venal, isso sem desmerecer os que sofrem dos pequenos horrores da vaidade, e aqueles outros cuja imaginação é suficiente apenas para oportunizar o cotidiano, já que é no cotidiano que eles dizem mais do que realizam, já que os repertórios dos assuntos são tão repe­titivos quanto os opúsculos que publicam e que, não raras vezes, barulham mais do que se manifestam.

Nessas tardes chuvosas de maio, no Café Riche, vão as bocas sorvendo o vinho do banqueiro Darasse e rasgando com eloqüência pedantesca o nome do poeta que acabara de retornar a Paris e agora conduz os passos bem devagar, como se o desânimo de desembarcar na estação do Norte fosse algo bem mais comprometedor do que os trinta e cinco poemas que escrevera e que lhe pesarão nos ombros bem mais do que toda a bagagem que deixará num quarto do hotel de Dieppe, à rua de Amsterdã. Um pequeno jornal de circulação vespertina noticia que Baudelaire viera para receber a Cruz da Legião de Honra e que Dostoiéviski acabara de deixar Paris, rumo à Itália, prometendo escrever Memórias de verão sobre impressões de inverno. A nota é recebida com reserva, pois ninguém em Paris, exceto a álacre boêmia liderada por Bakunin, se interessa por autores russos, nem por Baudelaire, conquanto estando ele com um livro no prelo, numa editora censurada, em breve estará novamente metido em encrencas com a Justiça e a Igreja. A nota jornalística sacode para o alto o tom das vozes e abre espaço para muitas opiniões divergentes. Teria de fazer um exame mais acurado para não confundir as opiniões com os próprios juízos, o que é comum, quando o fazemos de modo precipitado. “Senhor Darasse, saber de Baudelaire é fácil, difícil é estar preparado para aceitar as suas excentricidades.” “O grande poeta acabou de chegar de Dieppe, para instalar a amante, que está paralítica, em Neuilly, à rua Louis-Philippe, 4, quarto 19.” “Quando Baudelaire abre a boca e recita, despeja no ambiente timorato dos burgueses, uma nuvem de germes contagiantes que espanta a todos.” “Fique longe dele, é um sujeito inquietante, jansenista e faccioso.” “Sua poesia é o testemunho do nojo à insinceridade e aos valores honoríficos.” “Baudelaire é a mais bela defesa das belas-artes e das belas-letras.” “Vem por aí um novo ultraje aos bons costumes da França.” “Em janeiro deste ano, Auguste Poulet-Malassis, que está falido, e Charles Baudelaire, que deveria agradecer aos céus e à influência da senhorita Sabatier por não ter sido preso, festejaram um contrato para reedição de cento e cinqüenta exemplares d’As novas flores do mal.” “É tão ingênuo que dilapidou a sua herança, ostentando a vaidade de uma negra vadia que escapou de um leilão na ilha de São Domingos para ser sua musa.” “O poeta divide o seu amor com ríspida dignidade entre duas mulheres, a viúva Caroline, sua mãe, e Jeanne Duval, sua amante.” “Baudelaire é uma presença que só virá a incomodar-nos financeiramente.” “É sabido que o poeta anda cabisbaixo, escondendo-se dos credores, dos editores que lhe adiantaram direitos autorais e dos amigos dispendiosos.” “Dele, sei apenas o que me disseram e basta.” “O filho do padre despadrado, Joseph-François Baudelaire e da beatífica madame Caroline Dufaÿs, ameaça obstruir com rudeza e licenciosidade todo o futuro literário da nova geração de poetas.” “Baudelaire queimou uma herança de cem mil francos, só com improbidades. Não morreu de fome, graças ao general Aupick, seu padrasto, que em 1842, nomeou um conselheiro juramentado para cuidar da sua conta-tutela e do patrimônio imobiliário deixado pelo padre.” “O poeta não tem ópio nem para se aliviar das dores provocadas pela sífilis. Soube que quando exilou-se na casa da mãe, em Honfleur, perdera o crédito com o farmacêutico.” “Antes disso, vendeu toda a mobília e as melhores roupas da infeliz amante Jeanne Duval para quitar parte das dívidas do editor Auguste Poulet-Malassis, um normando irônico e audacioso que tinha uma tipografia em Alençon.” “Em menos de um ano, foi despejado três vezes, sempre por problemas de inadimplência.” “Quem em seu sarado estado de lucidez admira a um virulento parasita das artes, deve admirá-lo bem mais quando se deixa contaminar pelo entusiasmo das traças que devoram revistas como La Revue Contemporaine, que publicou seus delírios que nos enchem as vísceras de haxixe e ópio.” “Por onde ele passa com seu ramalhete de flores nauseantes, vai deixando intrigas, tramas e conciliações.” “Um país que tem Napoleão III reinando das Tulherias, Victor Hugo conspirando da Bélgica e Baudelaire em todas as bocas nunca será esquecido.” “Baudelaire era enteado do falecido general Aupick, embaixador da França em Constantinopla, brilhante senador do Império e dignitário de trinta e seis ordens estrangeiras.” Jean Darasse agora supõe que o vira no velório do general Aupick, ocorrido em 28 de abril de 1857, na igreja de Notre-Dame-des-Champs. “Seria ele, aquele sujeito calvo, ossudo, que conduziu as condecorações do falecido até o Montparnasse?” “Ele mesmo”, confirma um interlocutor, “parecia um monge ao lado da viúva.”

No meado do outono, quando Paris começa a ficar interessante com a reabertura das óperas, dos teatros e dos concertos ao ar livre, só resta ao banqueiro Darasse lamentar o tempo que despende fazendo cálculos mirabolantes, assinando hipotecas, penhores e praticando atos que nem vale a pena mencionar. Se é por suas posses que consegue se impor, por outro lado não há como evitar o desprezo desses mesmos que fingem respeitá-lo, e isso obriga-o a ser arredio aos assuntos que reputa alheios aos seus interesses. Provavelmente já está analisando um meio de tirar proveito dos eventos culturais, afinal Paris é o cenário do mundo, e um agiota, para muitos, não passa de um estranho avarento, dotado de fugaz cobiça, que não esconde a decepção quando se vê explorado pelos falastrões dos cafés Riche e Robespierre. Talvez já admita que a curiosidade de saber mais sobre o ídolo do seu tutelado, de conhecê-lo na intimidade, não é um mero pretexto para ir aprendendo como funciona a indústria cultural que já desponta como uma atividade prestigiosa e lucrativa. Mas não é só isso que conta para a sua ascensão social, afinal, pouco adianta ser um burguês inculto e se não for capaz de descobrir de onde provém a força das expressões artísticas, principalmente da literatura e da música, nunca saberá o que está por detrás da contrastante aspiração dos escritores malditos que amea­çam derrubar o império.

Jean Darasse, que nesses meses de intensas atividades, também aprendera a gostar da música de Richard Wagner, lê na imprensa do bulevar um tardio elogio de Baudelaire ao compositor alemão, que, por pouco, não fora totalmente ignorado pelo público quando se apresentou em dois fracassados concertos no Teatro Italiano de Paris, no início do ano. Apesar da hostilidade como fora recebido pelos franceses, mas incentivado por Champfleury e agora, de modo mais explícito, por Baudelaire, Richard Wagner acerta com o banqueiro Darasse o patrocínio para um grande concerto no Ópera, que ainda está cheirando a tinta. Tudo se encaminha para que Wagner faça a abertura da primavera, em março do próximo ano. Jean Darasse confidencia ao compositor a sua intenção de aproximar-se de Baudelaire. Wagner limita-se a dizer que nutre pelo poeta a mais profunda gratidão, que o admira muitíssimo pelo talento, pelo gênio provocador e que dele recebera grandes incentivos através de uma carta, mas que nunca o vira em lugar algum e sequer saberia dizer onde ou como estará ele vivendo, e por fim insinua que seu amigo Champfleury talvez possa providenciar o tal encontro, afinal os dois são amigos há bastante tempo, muito embora, na ocasião em que procurou aproximar-se do poeta, Champfleury trouxera-lhe um recado inusitado: “Faça o favor de dizer ao grande compositor que é cedo para o nosso encontro. Não quero que pense que irei pedir-lhe favores.”

Ninguém preveniu ao banqueiro Darasse quanto aos percalços que terá de enfrentar para se infiltrar na intimidade de Baudelaire. Há três meses que o poeta não aceita convites e pouco tem comparecido aos locais públicos. É de geral conhecimento que se ele decidir sair da toca, o fará em companhia da senhorita Aglaé-Joséphine Sabatier, conhecida nas altas esferas da sociedade como Apollonie, a Presidenta. Jean Darasse precisa ser avisado de que, quando os dois estão juntos, até mesmo os amigos mais chegados, como Théophile Gautier, Sainte-Beuve, Champfleury e muito raramente Gustave Flaubert, se submetem às expressões cínicas do casal, quase sempre ocupados com as impropriedades conjugais. A aproximação será ainda mais desafiadora se os dois estiverem no restaurante do hotel Pimodam sob o império do falso bem-estar propiciado pelo ópio. Não é surpresa alguma que o mais descabelado dos poe­tas aproveite bem a pujança econômica e física da perita amante, uma exótica mulher branca, de cabelos ruivos, em cachos longos, olhos vivos, que quando olha, paralisa e fascina, e se não olha, magoa. É possível que os dois ignorem a camarilha de machos excitados e fiquem horas e horas entregues ao deleite dos estímulos, dos gestos bruscos das mãos, ela, cheia de esperteza e espiritualidade, ele inebriado com o cheiro que exala a epiderme da amante e juntos entoem um pouco mais alto do que um sussurro, que o amor entre os casados não dura pelo excesso de pudor e “viva a luxúria, viva a luxúria”, dirá ele, “o céu é aqui mesmo, o inferno também, o resto é insuficiência, por isso me lambuzo com o que extraio dos teus lábios, antes de me enfiar no mais cobiçado dos abismos” e ela dirá com toda a irretidão moral que o excesso de vinho propicia, “na corte não há ninguém honesto, as mulheres são todas sobejadas, portanto não há o que temer, que nos olhem assim como estamos, o presente que vale é este, o resto é mera referência e passará como o fogo das tuas mãos, que agora incendeiam as minhas instabilidades congênitas, e nos teus braços, deixarei que morra tudo, o tédio, o ócio e a luxúria”.

Jean Darasse já estava prevenido de que, se assim estiverem os dois, convém aguardar o aspecto triunfal da mulher, e só depois, quando o poeta retirar a mão de uma fenda ruiva que ela esconde sob o véu da saia e começar a cheirar os dedos, ou a espargir nos lábios o líquido que dali conseguiu tirar, é o momento em que alguém poderá se aproximar sem risco de uma repreensão. Mas se o poeta estiver sozinho, num instante em que ela foi se recompor no toalete, convém especular o seu semblante e tentar adivinhar se está muito contrariado ou sobejamente eufórico. Estando eufórico, o perigo é redobrado, pois costuma distrair-se obstruindo os horizontes de quem o aguarda com o intuito de surrupiar-lhe as idéias ou mesmo um elogio cheio de erudição.

No Café Robespierre, Jean Darasse é apresentado a Manet, um jovem pintor em ascensão que priva da amizade de Baudelaire, inclusive havia pintado um quadro intitulado La maîtresse de Baudelaire, no qual retrata Jeanne Duval no primeiro plano e, mais ao fundo, o poeta. Nas indicações que vai colhendo num meio inteiramente estranho ao seu, Jean Darasse é levado à casa do publicista e agente literário, Louis Ulbach, para assistir a um sarau em torno do festejado poeta Théodore de Banville. Lá ele toma conhecimento que Baudelaire anda alardeando na imprensa que vai se candidatar a uma vaga na Academia Francesa, na cadeira a ser deixada pelo padre Lacordaire. É intrigante o pleito, pois o imortal ainda anda e fala, mas espera-se que não se demore a morrer. Ulbach, interessado num eventual patrocínio para ampliar o seu cenáculo de novos talentos, comete a gafe de apresentar o banqueiro Darasse com a mesma lisonja dispensada ao ilustre declamador da noite. Jean Darasse não sabia que no espaço de um poeta não comporta outra estrela e dispara a falar das suas viagens ao estrangeiro, dos bens que possui e outros destoantes assuntos. Aos poucos, percebendo um clima de hostilidade, ele pede desculpas e senta-se. O salão estremece quando uma voz, vinda da última fila, chega a todos os ouvidos: “Finalmente o parasita da corte entendeu que não estamos interessados nos seus assuntos, nem nas suas redundâncias expletivas.” Banville ri às gargalhadas enquanto o anfitrião se esforça para evitar a degeneração das conversas. Terminada a reunião, Jean Darasse é apresentado a Eugène de Broise, cunhado e sócio de Poulet-Malassis, editor de Victor Hugo, Théophile Gautier, Champfleury, Théodore de Banville, Asselineau, Flau­bert, Baudelaire e muitos outros autores. Nessa conversa ele descobre que Bau­delaire deixara o recinto, alegando que iria desocupar o hotel de Dieppe, à rua de Amsterdã, para ir morar com Jeanne Duval em Neuilly, num quarto à rua Louis Philippe, 4. Jean Darasse lamenta apenas não ter podido dizer a Baudelaire que não é um parasita da corte, mas um agente de negócios.

No dia seguinte, a pretexto de agiotagem, ele vai à editora-livraria, na esquina da passagem Mirès com a rua de Richelieu, conversar com o endividado editor Poulet-Malassis, esse homem bem-vestido, de compleição atlética, aspecto viril, um pouco calvo e sobrancelhudo, que aparece de cavanhaque e bigode para impor respeito. A precariedade das suas finanças não lhe impede de sonhar com a renovação artística na França, até então dominada por Hugo, Balzac e La­mar­tine. “Senhor Darasse, precisamos descobrir novos escritores”, diz o editor. “Somente a juventude, essa dona suprema da ousadia e a literatura, esse ópio dos talentos inquietos, poderão acordar um país acabrunhado pelo excessivo apego às tradições.” Durante a conversa, eis que Poulet-Malassis põe nas mãos do banqueiro Darasse os originais de Pequenos poemas em prosa, de Baudelaire, que está no prelo. A leitura da primeira versão do poema “As litanias de Satã”, não o assusta tanto como a frase Ô mon cher Belzébuth, je t’adore!, manuscrita pelo autor no frontispício da brochura. “O que move um adolescente como Isidore Ducasse a admirar alguém dotado de tal estado de espírito?”, pergunta-se Jean Darasse que, aos poucos, se deixa persuadir pela boa conversa do editor. Poulet-Malassis vai angariando respeito à medida que comenta sobre o êxito editorial do editor belga, seu amigo d’Albert Lacroix, que ousou comprar por trezentos mil francos os direitos autorais d’Os miseráveis, de Victor Hugo. Atento às intenções do editor, o banqueiro diz: “É uma fábula e tanto em se tratando de livros”, e logo desvia a conversa para a economia-política. É claro que o faz de forma sutil, tanto quanto é sutil o propósito da usura e da política, cuja teoria geral cabe em dois verbos no infinitivo, aquinhoar e enfraquecer.

Poulet-Malassis, percebendo a esquiva do seu interlocutor, protela o bote. Não são essas conclusões senão do banqueiro Darasse, que parece irritado, tanto pelo barulho das prensas tipográficas, como pelas constantes interrupções de um maquinista engraxado, que de vez em quando entra na sala para mostrar uma prova impressa ou reclamar de um tipo defeituoso. “É esta a rotina de quem trabalha com impressão de livros”, desculpa-se o editor, que agora critica os gastos inúteis com o envio de tropas francesas ao México, enaltece o fim da servidão na Rússia, ora concorda e ora discorda da ameaça prussiana e com perícia vai preparando o terreno com o fito de solicitar um empréstimo de trinta mil francos para modernizar a gráfica. Jean Darasse, mesmo sabendo que o editor é bem mais habilidoso na hora de justificar a sua inadimplência do que no ato de contrair um empréstimo, garante-lhe os recursos para uma só publicação. Não sejamos tão conclusivos quanto aos propósitos do banqueiro, afinal cinco mil francos é uma quantia irrisória para quem pretende conquistar a amizade de Baudelaire, não por ser um poeta que é amado e odiado, mas porque priva da amizade de grandes nomes como Lamartine, Hugo, Gautier, Wagner e muitos outros. Jean Darasse pensa em algo que é mais importante do que tudo isso, quer melhorar a imagem de um negócio que anda na mira dos socialistas. Depois de ouvir os argumentos do editor, o banqueiro pede absoluto sigilo e sobe o empréstimo para seis mil francos, não porque almeja contribuir para o desenvolvimento cultural da França, nem porque quer ajudar um editor falido, muito menos a Baudelaire, mas porque sabe que acertará em três alvos distintos com um só tiro. Sabe que o editor usará parte desse dinheiro para distribuir Os miseráveis, de Victor Hugo, obra recém-publicada na Bélgica, de onde o poeta conspira contra o regime de Luís Napoleão, desde 11 de dezembro de 1851, quando por lá exilou-se logo após o imperador haver dado o golpe de Estado. Ele espera que essa obra estronde como uma bomba contra o império que o persegue. Sabe também que a publicação do livro de Baudelaire irá agradar muitíssimo ao seu tutelado, que além de ter no poeta um ídolo, é também herdeiro de uma polpuda conta no seu banco. Desse modo também estará ajudando ao amigo François Ducasse, que poderá conseguir numa eventual, porém difícil mudança de gabinete, a sua cobiçada transferência para o Brasil. Quiçá também Isidore Ducasse passe a admirá-lo por esse feito, o único pelo qual será lembrado no futuro, e nunca mais o detrate com levianos comentários num diário. É o que espera o banqueiro, que na despedida ouve Poulet-Malassis dizer que são as atitudes concretas que vão selando as afinidades e consolidando a admiração e o respeito entre as pessoas de interesses amplos.

Pouco tempo depois do empréstimo, o banqueiro Darasse toma um susto quando pega Le Figaro e lê a manchete bem acima da foto de Poulet-Malassis: “Editor de Hugo e Baudelaire é preso por estelionato”. A matéria não é rica em detalhes, mas explica sucintamente que ele fora condenado à prisão na cadeia Clichy por dívidas. Na mesma página, logo abaixo, publicaram uma entrevista na qual Baudelaire deixa claro que não conhece nenhum homem verdadeiramente honrado na França que possua a envergadura moral do seu editor.

“Poulet-Malassis é um idealista que se deu mal nos negócios que envolve os prelos literários. O que acaba de acontecer é sinistro. Ah! infeliz sonhador, se tivesse uma sinecura hereditária no Estado, como as possuem os membros da magistratura, que não possuem uma só, mas duas ou três, isso sem dizer dos benefícios que se estendem aos seus familiares e até às respeitadas amantes, Malassis não estaria na mira dos abutres e agiotas que o levarão a definhar na jaula.”

Se Baudelaire foi o primeiro a sair em defesa de Poulet-Malassis, por outro lado, sua pressa só veio a prejudicar o amigo. Fora demasiado ingênuo, não só pela tempestiva declaração, mas por haver consentido que publicassem, no calor desses acontecimentos, trechos de uma carta que por descuido, deixara de enviar à senhora Caroline Aupick, sua mãe: “Estou calmo agora, mas quero ser uma exceção. Que condecorem todos os franceses, exceto a mim. Em vez da Cruz da Legião de Honra, deveriam dar-me dinheiro, dinheiro, nada além de dinheiro. Se a Cruz vale quinhentos francos, que me dêem quinhentos francos, se vale vinte francos, que me dêem vinte francos… Sim, é verdade, quanto mais fico infeliz, mais o meu orgulho aumenta. Mas quando estou sozinho no meu quarto, à luz de uma vela, escarro na mulher, na Legião de Honra, na Academia Francesa, na democracia, na corte de justiça, em Luís Napoleão, em Hugo…”

Jean Darasse está ciente de que, estando o editor impedido de trabalhar, aquele empréstimo jamais retornará aos seus cofres. Evidentemente que o risco já era previsível, os boatos sempre revelam algum fundamento, mas no entusiasmo que estava nunca quisera ele admitir tal possibilidade. Terá de pensar num modo de ajudar ao editor, mas não quererá envolver-se em negócios arriscados, pelo menos diretamente. “Quem mais além de Baudelaire teria coragem de arriscar-se por Malassis?”, indaga-se. Nos dias seguintes os jornais de Paris continuam a afundar o editor num mar de fraudulentas operações. Tudo é o que se admite, mas nem sempre, às vezes uma notícia modifica a vida de um sujeito tão rapidamente quanto as intenções de quem as manipula. Não se sabe os pormenores das falcatruas do editor, e mesmo não sendo tão rica a matéria, percebe-se que, quando uma minoria organizada quer o que muitos não querem, certas reviravoltas não são possíveis, uma vez que uma opinião dominante só comporta o que interessa, é o que pesa na decisão que vem à tona, não só para a geral surpresa como também para a diversão de quem no mínimo deveria fazer um exame mais fundo antes de opinar, já que toda mudança implica em nova adaptação. Mas, inobstante o fato de haver recebido o dinheiro pela venda dos direitos autorais a Malassis, Baudelaire, que também vendera os mesmos direitos aos editores Hertzel e Michel-Levy, toma a decisão de não falar desse livro, pelo menos enquanto o seu editor estiver na cadeia. “Quem sabe se por uma bagatela de mil francos algum carcereiro facilite a fuga”, é essa a idéia que começa a perseguir o banqueiro. “Mas quem vai garantir que Baudelaire, desesperado como anda por dinheiro para salvar a sua paralítica, vá ser conivente com uma coisa dessas?”, pergunta-se o banqueiro Darasse.

Meses depois, uma carta de Malassis chega às mãos de Baudelaire, que deixou de visitá-lo há três meses. “Meu caro amigo, hoje acordei sobressaltado. Quando o carcereiro abriu a porta da minha cela e olhou-me fixamente, percebi que ele quis me sugerir algo. Mas é preciso ter cuidado, pode ser uma armadilha. Novamente me tosaram o cabelo. Com ajuda de uns amigos que fiz aqui, já mapeei todas as galerias internas, as escadas secretas, os porões, os corredores e os canais subterrâneos. É tudo tão imundo, tão fedorento. Tenho sofrido muito porque ainda sonho com a liberdade. Não perdi a esperança. Se ao menos eu não alimentasse o sonho de uma fuga, seria mais fácil suportar tudo isso. Ah! Uma fuga, como eu chegaria rápido à Bélgica. Meus sonhos são sempre correndo, correndo.”

Mudam-se as estações, as circunstâncias também são outras e um novo ano já vai adiante, quando finalmente os jornais noticiam com estardalhaço a inexplicável fuga do editor Poulet-Malassis, que nesses instantes acaba de cruzar, com um passaporte falso, a fronteira da Bélgica. De lá, Victor Hugo, que lidera os movimentos de quem luta em prol da liberdade contra os regimes opressores, aproveita o incidente e envia uma nota aos principais jornais da França.

Ninguém melhor do que eu sabe o quanto dói um exílio. Mesmo assim, prefiro não me beneficiar com a anistia concedida pelo pequeno imperador dos franceses, a retroceder contra os tiranos. Nenhum império ou tirania dura para sempre. Não são minhas estas palavras, mas daquele imperador francês, que as más línguas não ousam dizer que é o filho bastardo do almirante holandês Verhuel. Quando a liberdade voltar, eu voltarei. Da minha parte, vou despender todos os esforços para que o meu amigo Poulet-Malassis tenha uma boa estadia na Bélgica. Victor Hugo.

No internato, Isidore Ducasse, que acompanha os acontecimentos pelos jornais de circulação local, já conta os dias que faltam para concluir o ciclo ginasial. Já insinua para os amigos que espera qualquer coisa no próximo semestre, quando estiver residindo em Pau, menos ser matriculado no Liceu Louis Barthou como interno. Se de fato almeja a sua liberdade, é hora de começar a pressionar quem cuida dos seus interesses. Eis que no seu aniversário de dezessete anos ele é visto postando duas cartas idênticas para os tutores, Jean Dazet e Jean Darasse.

Tarbes, 4 de abril de 1863.

Quando o aluno interno em liceu é governado por anos que são séculos, do amanhecer até a noite e da noite até o dia seguinte, por um pária da civilização, que dele não tira os olhos, sente as ondas tumultuosas de um ódio voraz a subir-lhe como uma fumarada espessa até o cérebro, que lhe parece a ponto de estourar. Por mais bem tratado e por mais confortável que for o seu dormitório, nunca terá um espaço só para si. Por isso quero que convençam ao meu pai de que preciso de um quarto onde eu possa experimentar a minha solidão, onde eu possa escrever sem ser interrompido por um curioso que chega devagarzinho na ponta dos pés, onde eu possa demorar no sanitário sem ser importunado por um intruso.

Em fins de julho de 1863, Jean Darasse, que se preparava para ir à Bélgica, recebe uma convocação inesperada. Será o padrinho de Isidore Ducasse que, finalmente, concluiu o troisième no Liceu Imperial de Tarbes, obtendo o primeiro lugar por excelência. “O cônsul François Ducasse precisa saber disso e com urgência. Ficará muito envaidecido e saberá agradecer o meu trabalho.” Não há um minuto a perder do seu escasso tempo. Terá de ir no trem da noite, do contrário não vai poder descansar antes das festividades do dia seguinte. Sua dúvida é saber por que fora convidado de última hora. “Por que ele não convidou Jean Dazet, que lhe assiste mais de perto?” Não fosse um sujeito prático, habituado por dever de ofício ao inesperado, estaria bastante atrasado para enviar um telegrama confirmando o horário de chegada, antes mesmo de se ocupar no trabalho maquinal de arrumar a mala. A manhã vai surgindo quando o trem pára na estação de Tarbes. Jean Darasse, que raramente consegue dormir no desconforto de uma poltrona, acorda surpreso. Já vai desembarcar quando dois olhos penetrantes e uma boca sorridente aparecem na vidraça. Pela primeira vez Isidore Ducasse vem recebê-lo à porta do vagão. Atrás dele vem o diretor, sempre cordial. Depois de quebrarem o jejum e de acertarem os horários dos eventos, Isidore Ducasse e o diretor deixam o viajante a sós no saguão do hotel Imperial.

São seis da tarde quando as primeiras frases muito solenes deixam todos com os nervos à flor da pele. Ele que nunca se revelou em oratória e nem mesmo sabe que uma palidez súbita acaba de ofuscar o seu olhar decisivo, já começa a tremer, talvez pelo receio de parar os olhos nalgum adversário. “Já é consenso que as obras-primas da língua francesa são os discursos de entrega de prêmios dos liceus e os discursos acadêmicos, por isso, peço a complacência dos senhores pelas minhas nítidas limitações. É que estou deveras emocionado com tantas presenças, principalmente pela presença dos meus tutores, que são para mim muito mais do que pais.” Mas, à medida que vai lendo o discurso, impostando a voz com a soberana autoridade de quem dirá o que gostaria de ouvir, toda a sua inquietação inicial vai se transformando em esta­bilidade. “Antes dos formais agradecimentos, gostaria que soubessem de um segredo: não conheço outra graça além de ter nascido, de sorte que, nunca reneguei a imortalidade do espírito, a sabedoria de Deus, a grandeza da vida, a ordem manifesta no universo, a beleza corporal, o amor da família, nem as instituições sociais. Minha fé não é religiosa, mas é uma virtude moral pela qual aceito as verdades que Deus revela através da minha consciência, não da consciência que se nos impõe ao toque dos sinos, das cornetas, dos martelos ou das sirenes.”

A inquietação é geral quando ele tira os olhos do texto e começa a improvisar. Suas mãos já não tremem e a coloração natural do seu rosto fora res­tabelecida. Ninguém lembra de tê-lo visto tão moderado, elevando o olhar sempre à frente, um pouco mais alto do que o necessário, às vezes estirando o pescoço como se estivesse procurando alguém muito especial que supõe estar sentado na última fila do auditório. “Minha fé se baseia no princípio de liberdade em oposição à opressão e na justiça distributiva em oposição à miséria. É essa fé que me permite contestar posições e lideranças impostas com veemência, na maioria das vezes, injustamente. Meus senhores, tivemos em determina­das ocasiões, desentendimentos de toda ordem com alguns colegas, pro­­fessores, e até mesmo com quem tem por missão nos assistir. Isso não significa que estivemos sempre errados. E aqui, tomando de empréstimo as palavras de Roche­foucauld, eu digo: ‘Se não tivéssemos defeitos, não sentiríamos tanto prazer em nos corrigir, em louvar nos outros o que nos falta.’ Não somos como as bestas apocalípticas, que só ignoram o que fazem ou o que delas esperam os estúpidos, porque são apenas palavras, nós não.”

Hilariada com a força retórica de Isidore Ducasse, a assistência começa a aplaudir. O padre, o corregedor e o diretor empertigam-se quase que simultaneamente ao vê-lo retomando a palavra. “Todavia, para se descrever o Céu, não se deve transportar para lá as coisas da Terra. É preciso deixar a Terra e seus materiais onde estão… tratar Deus por você, dirigir-lhe a vã palavra, é um inconveniente despropositado. O melhor meio de mostrar-lhe reconhecimento, não é trombeteando-lhe os ouvidos, dizendo que é poderoso, soberano, ou que somos vermes em comparação a sua grandeza. Cada um que aprenda a dominar a sua atroz natureza. Isso vale para todos. Como caçador de obras perdidas, Deus sabe o quanto fingimos o tal amor, a tal justiça, que nada mais são, na maioria de nós, do que medo de sofrermos uma injustiça.

O que mais poderia surpreender a quem por pouco não se retirou ao ou­vi-lo improvisar os mais fundos agradecimentos ao professor Lataste? Preocu­padíssimo, e com justa razão, pois jamais esperaria ser citado pelo orador, como um homem bom, cumpridor dos deveres, que não possui a mínima vocação para perseguir juvenis espíritos, o corregedor enrubesce, maneia a cabeça e depois abaixa a vista, não sabemos se de vergonha ou por cinismo.

De volta a Paris, depois de haver matriculado Isidore Ducasse no Liceu Louis Barthou de Pau, o banqueiro Darasse aceita um convite para ir jantar na mansão da senhorita Sabatier, no número 4, da rua Frochot. Ao saber do empréstimo­ concedido pelo banqueiro a Poulet-Malassis, Sabatier lamenta pro­­fundamente por este não mais poder voltar à França, salvo se quiser apodrecer na cadeia. “Nos domínios do imperador, quem estiver contra é como chamar todo o país de inimigo. Não é justo que um homem tão dedicado ao trabalho, cuja pior virtude é não ter uma sinecura na máquina do Estado, e por omissão de quem deveria ter a incumbência de desenvolver a sociedade pela via cultural, assumiu o ônus por uma tarefa que o levou à ruína.” Apesar disso, Sabatier não esconde um ranço de decepção por ter se deixado envolver por Baudelaire. Confidencia que, na sua boa intenção de ajudá-lo numa hora difícil, acabou por comprometer-se em reputação perante os membros da Corte de Justiça. Judith Gautier pede licença ao pai, Théophile Gautier, chama o banqueiro Darasse em particular e diz: “Ela faltou com a verdade ao se referir a Baudelaire. Não é amor, nem o fato de haver se tornado musa do poeta que a incomoda. Para quem foi amante do dono das fontes d’água de Paris, o senhor Richard Wallace, e simultaneamente do rei das minas de carvão, o senhor Alfred Mos­selman, é muito duro ser preterida por uma ex-prostituta de cor, que além de paupérrima e sifilítica, está paralítica.” “Mas isso não é um flagrante delito, nem deveria causar tanta estranheza entre nós, afinal, as verdadeiras musas de Baudelaire sempre foram mulheres decadentes, a primeira foi sua mãe, a quem odeia e ama por antítese, a segunda foi a judia Sara, de quem ele contraiu sífilis na adolescência, e por fim, Jeanne Duval, a quem ele despreza e ama des­temperadamente”, diz Gautier, que além de privar da intimidade de Baudelaire, é também supremo na arte de fazer musas. Para que esse sentimento fique bem claro, Sabatier confidencia ao ilustre convidado que anos atrás, em agosto de 1857, por desafiar as leis morais e os bons costumes da França, Baudelaire fora condenado pela Câmara Correcional a pagar uma multa de trezentos francos e Poulet-Malassis, juntamente com o sócio, De Broise, além da obrigação de recolherem toda a edição d’As flores do mal, foram condenados a pagar cem francos cada um. “Mas devido à precariedade das suas finanças, Baudelaire conseguiu comutar a condenação para cinqüenta francos, e nem isso pagou”, ironiza Sabatier, “alegando ser esse tipo de punição um menosprezo arbitrário ao seu talento e ao valor literário da sua obra.” Os convidados só param de rir quando a anfitriã traz à mesa um exemplar d’As flores do mal, encadernado em marroquim verde-musgo e revela: “No entanto, nada nesta casa tem tanto valor estimativo para mim quanto este livro.” Jean Darasse surpreende-se ao ler na folha de rosto uma dedicatória comprometedora: Minha senhora, apresto-me a deixar escrito que todos os versos entre as páginas 84 e 105, lhe pertencem.

Em setembro de 1863, dias antes da mudança para a vila de Pau, Isidore Ducasse, ao saber da morte do poeta da pintura Eugène Delacroix, ocorrida em 13 de agosto passado, vítima de pneumonia e por estar ele próprio muito gripado, sentindo-se encatarrado e febril, rapidamente se apressa em fazer um inventário dos seus pertences e de tudo que escrevera até aqui. Para Georges Dazet, que continuará em Tarbes até o término do ginásio, ele deixa um Ilíada, de Homero, traduzido para o espanhol por José Gomez Hermosilla, que havia recebido do banqueiro Darasse por ocasião do seu aniversário de dezessete anos. Eis o que está escrito na folha de rosto: “Propriedade do senhor Isidore Ducasse, nascido em Montevidéu, Uruguai. Tenho também a arte de falar desse mesmo autor. 16 de abril de 1863.”

No balanço que faz, boa parte do seu diário é destruída na lareira da casa de Georges Dazet, enquanto um novo livreto é assim iniciado: “Estou seguro de que escrever um diário é coisa de quem tem pouco escrúpulo biográfico. Descrever as paixões não é nada, basta se nascer um pouco abutre, um pouco chacal e um pouco pantera.”

Se há nisso um falso reflexo de dignidade, um falso desprezo às suas idéias juvenis, a começar pelo código criptográfico que acabara de abolir, que então doe tudo ao fogo e reescreva tudo o que agora vai sendo jorrado pelo entusiasmo do momento.

Os últimos dias de férias vão se consumindo sem alterações. É preciso que algo mais significativo aconteça para dar vazão a um princípio interior de superação. O que Isidore Ducasse precisa fazer para romper o duro peso da história sobre o seu cotidiano? Sua avó, que estava muito doente, faleceu há menos de um mês e já não alimenta mais esperanças de receber outra visita do pai, que continua labutando no Uruguai. Não são apenas os negócios de François Ducasse, nem as águas que os separam, que vão tornando-o definitivamente órfão, mas as perseguições que o pai vem sofrendo por parte dos seus desafetos na Chancelaria Geral de Paris. Como nenhum favor, notícia, ou mesmo providência chega a tempo, vai Isidore Ducasse desvestindo a cama e abrindo um manto bucólico para, depois do jantar, dormir a primeira noite numa pensão de estudantes em Pau. Ainda que não seja uma noite das mais tranqüilizadoras, pois na manhã seguinte adentrará os muros do Liceu Louis Barthou na condição de interno, ele procura aproveitar as poucas horas de sossego, num quarto exclusivamente seu. A temperatura lá fora vai descendo rápida para treze graus centígrados e não há como domar os ventos sem rumo desses dias outonais. Antes de apagar a luz, ele veste-se em mangas compridas e deita-se. No que estará pensando? Nem ele mesmo sabe ainda se está lembrando dos amigos que deixara em Tarbes, ou se daquela noviça que cuidava da sua higiene no hospital. É difícil adivinhar o que se faz com ocultas intenções, como por exemplo, debaixo de um cobertor de lã, sem o qual não se pode dormir acalentado por bons pensamentos, um já vai sugerindo o objeto de desejo, o outro já vai despertando mais entusiasmo, esse que vem por último vai criando um vínculo um tanto quanto subjetivo entre a sua intenção e o que de fato almeja, os desejos também comportam nas lembranças, assim está escrito no catálogo das eternas proibições cristãs, mas tais lembranças, se ocultas forem, que se manifestem no ritmo da excitação, o que já é um princípio para um espírito aceso por outra remota recordação, talvez daquelas negrinhas tísicas do Cabo da Boa Esperança, foi o princípio de tudo, e tinha apenas treze anos, agora tem dezessete, mas um princípio nem sempre conduz a um fim, os meios é que são eles, no caso em questão, o incômodo que desconsola a alma e desfaz toda a cumplicidade dos seus pensamentos, são os ouvidos atentos que o escutam no alojamento contíguo.

Os dias vão se alternando como se alternam também os naturais impedimentos de arrumar o que todos os dias se desarruma neste velho mundo, tão subestimado quanto o olhar contente de quem recebe um elogio inesperado do pai, mas que de fato é uma alegria passageira, porque não há nesses envelopes selados com as insígnias da França, nada mais do que uns incentivos vulgares, elaborados de tempos em tempos, como se as palavras escritas em papeluchos substituíssem os afagos, os carinhos, os conselhos e mesmo as advertências que todo jovem precisa receber nas fases da vida. Mas já é tarde para suprir o que no devido tempo fora negligenciado, o tempo nunca recua por sua própria escolha, mormente agora, quando Isidore Ducasse começa a duvidar se seria oportuno clamar pela vinda do pai, já que as iniciativas anteriores em nada resultaram. Não está seguro do que almeja, nem se seria benéfico deixar as coisas como estão. Muitas vezes a dúvida, esse declive que precipita a maldade original no indivíduo e que faz cruzar o desespero com a melancolia, pode ser o começo de uma revolta crônica, pois é aí precisamente que floresce a mais inquietante crueldade. Todavia, prever algo assim, só é possível tomando de emprés­timo uma hipótese, que tanto deve partir de uma condição ideal de exis­tência, como de uma circunstância real em que se vive tal experiência, de sorte que, aos dezessete anos, lutando para obter umas gotas de conhecimento enquanto armazena em si um mar de intoxicações psíquicas, a personalidade de Isidore Ducasse ainda não está definida, nem há nada sistematizado em sua cabeça, especialmente sobre a parte mais encantadora da vida, a pecaminosa sexualidade, que já começa a dar sinais de extravio. Desconfiam disso os seus tutores, que já não o acompanham tão de perto, por isso mesmo não ousarão tocar num assunto de tamanha complexidade com o cônsul François Ducasse, que, devido aos problemas diplomáticos, por ora vive numa circunstância bem adversa da vilipendiada realidade do filho.