Elegiar um amigo que se foi é um ato contristador. É como ler uma endecha pelo fim, um fim não menos triste do que a compreensão falibilista que nos fere e evola-se para além do que inexiste aos olhos das ciências e da moral.
Nos últimos anos conheci pessoas admiráveis, cultas, dotadas de um caráter que me marcaram profundamente. Uma delas foi o Régis, a quem só conhecia de nome e fama. Devo o privilégio desse convívio ao poeta e médico, Pedro Henrique S. Leão, quem um dia me levou à “Confraria do Sábado” em companhia do vate universal Gerardo Mello Mourão, e lá fomos saudados pelo Rapsodo cearense, Juarez Leitão, de quem sou tributário nessa travessia literária.
Lembro-me que o Leorne Belém e o Régis foram os primeiros a abrir espaço para nos acolher. Logo notei que havia no Régis algo de sacerdote, de intelectual e de idealista incorrigível. Notei também ser ele dotado de um espírito altivo, irônico e crítico, próprio dos sábios, dos demolidores ou dos guardiões da vida.
Dias depois o Régis me convidou para um jantar que Bia e Lourdinha Leite Barbosa ofereceriam ao mestre B. de Paiva e ao saudoso poeta Afonso Barroso, de quem me tornei amigo, confidente e fã.
Ah, meu conspícuo leitor, não posso citar impunemente o Afonso neste epicédio ao Régis. O Afonso foi o primeiro que leu meus escritos nas longas tardes em que bebíamos rum cubano (presente do Ruy Guerra) e tabagiávamos zilhões de cigarros em sua casa no Rio de Janeiro. E quantos copos entornamos, e quantas lágrimas despejamos. E depois íamos ao “Alcaparras” nos curar da tristeza e acabávamos ainda mais ébrios, falando do tempo poético, da vida e da morte que já lhe espreitava à curta distância. Sabia disso o Régis, que me disse na livraria do gentleman Sérgio Braga: “O livro póstumo do Afonso é a prova da imortalidade das essências.” Saí dali abafado, ouvindo a voz do Afonso reverberando no íntimo, pois só o íntimo podia traduzir a minha melancolia diante da fatalidade, esse estranho poder que vive a nos contrariar.
Quando desceram a campa sobre o sepulcro do Régis, um dos seus discípulos aludiu aos significados do seu nome: “Eduardo, nome de rei; Régis, que dirige-se a si próprio ao; Monte, que é uma elevação notável acima do nível do solo; de onde brota o Jucá, etnônimo tupi de uma árvore de madeira duríssima do nosso sertão.
Naquele instante vi nos semblantes que nada pode ser mais triste do que um confronto com a instância derradeira, na qual a carne fenece nos vendavais da finitude, onde a vida é tão fugaz quanto as nossas mundanas conquistas. Nos rostos dos familiares via-se a expressão sofrida diante da verdade absoluta que nos rege e que nos determina.
Afastei-me da multidão e fui ao túmulo onde jazem minha filha e meu pai, que uma vez esteve sob os cuidados do Régis. Naquele silêncio hostil vi a tarde morrer enquanto eu dizia algo para acalmar a inquietação do meu espírito: Vai meu amigo, com os sentidos fixados nesse panorama real que a nossa imaginação não consegue alcançar, e até a hora mística do nosso reencontro que, se houver, será um momento singular, impróprio para testemunhas desse mundo.
Fortaleza, 22 de setembro de 2014.
Ruy Câmara é autor de “Cantos de Outono, o romance da vida de Lautréamont”, Editora Record, finalista do Prêmio Jabuti e vencedor do Prêmio ABL de Ficção 2004, categoria Melhor Romance do ano.