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IMPULSOS, obra da Sociedade Brasileira de Médicos e Escritores

Muito desabonaria este livro se omitisse do leitor que a inteligência literária dominante transformou o que se convenciona chamar de prefácio (texto que o autor faz fácil antes de começar a escrever sua obra) em espaço para reflexão pós. Portanto, no rigor do termo, não escrevo propriamente um prefácio, mas um posfácio,  já que a obra está plenamente consolidada e ao alcance de todos.

À semelhança de uma antologia, Impulsos reúne nomes consagrados da medicina que, por ofício, convivem muito amiúde com a estremeação pacificadora que precede a finitude do ser. Aqui não são as vozes dos médicos que estamos a ouvir, mas ecos de sensibilidade de homens que precisam estabelecer outra forma de diálogo com a sociedade.

Muitos se admiram quando sabem de um médico que se revela escritor ou poeta. Perguntei-me: por que se admiram? E se soubessem de um mecânico que, mesmo não tendo cursado uma universidade tornou-se prêmio Nobel da literatura? Eis José Saramago a nos dizer: “dificílimo ato é o de escrever, responsabilidade das maiores. Até para ser ateu um autor precisa de um alto grau de religiosidade.”

Que elo é este que une tantas naturezas distantes e distintas? A afinidade literária nos leva a refletir sobre a pergunta fundamental, “por que escrevemos?”. A questão nunca será plenamente respondida em separado da dúvida descarteana, “por que pensamos?” ou “por que existimos?”. Se examinarmos bem, cada resposta é mera tentativa de imobilizar no tempo a fluidez do devir e tal fluidez nada mais é do que o distanciamento existencial que se busca para enlevar o espírito aos planos mais altos da nossa transcendente perenidade material.

Ora, supondo ser o espírito humano tão mortal quanto o é a carne, não seria heresia insinuar um paradoxo ainda mais desconcertante: que o ofício do poeta pode ser comparado ao daquele que necropsia um cadáver para desvelar nos segredos da carne morta, o que substantivamente afetou a sua apocalíptica existência. Por outro lado, o ato introspectivo de compor pode se assemelhar ao arremesso da garrafa do náufrago, que apesar das duvidosas chances de ser arrepanhada, segue um destino incerto sobre o mar revolto, levando em si duas urgências: um grito reprimido de socorro e uma esperança salvífica que, pode significar a tentativa de imortalizar o ser ou a idéia.

Mas como um grito nem sempre é audível na vastidão do mundo e a esperança geral raramente se cumpre entre os destroços da lógica vigente, pode-se admitir que, nos meandros da arte literária, existe uma convenção pouco tácita ou mesmo ambígua entre o autor e o leitor e, identicamente entre o médico e o paciente, de modo que, um se disfarça de periodeuta que cura e aceita o segundo como enfermo. Mas quando o médico se assume poeta, os papeis estão arbitrariamente invertidos. Que transformação se verifica ai?

Lautréamont insinuou que os poetas das seculares escrituras são os enfermeiros que consolam a humanidade com palavras e Deus é quem ganha a fama. Se sua intenção foi decretar um equívoco insuprimível entre poetas e deuses, que o mesmo não ocorra entre autores e leitores, médicos e pacientes, pois, apesar da surdez do mundo, nem todo grito se extravia no espaço, porquanto a idéia suficiente do humanismo exige o verbo, e o verbo humanizar é ação pensante, por isso o ofício do poeta é levar para o leitor os Impulsos nauseantes que ameaçam seus domínios.

Porém, nenhum poeta deve ser considerado demasiadamente lúcido sendo excessivamente otimista, ainda mais se médico de ofício for, pois, para este, o mundo enfermiço se assemelha a um cenário purgatorial e a poesia é, portanto, o corpus metafísico que alivia a nossa caotizada condição humana, sendo também a expressão dos nossos fracassos carnais e a instância simbólica que descontinua o tempo aflitivo em que vivemos.

Se a poesia servir para alguma coisa a mais do que cumprir o papel da garrafa do náufrago, ainda que não leve em si a palavra suficiente, o fato de correr sempre à deriva sobre funduras e abismos, representa para nós, leitores, uma esperança que, mesmo sendo a última a morrer é, quase sempre, a primeira que se abala.

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Ruy Câmara é poeta, dramaturgo, romancista e sociólogo.