Ruy Câmara: Estar em Cannes mostrando seu último filme, Estorvo, o que significa pra você?
Ruy Guerra: Tivemos essa oportunidade de ser selecionado entre mais de 600 filmes, por ser um lon-ga-metragem que tem uma linguagem contra a corrente dominante. Talvez seja por isso que estamos sendo torpedeados. Mas para mim é uma honra estar nessa com o Chico Buarque, meu parceiro de muitas em-preitadas.
Ruy Câmara: Por que você escolheu esse romance do Chico para fazer o filme, um livro que na minha modesta opinião é muito ruim ?
Ruy Guerra: Primeiro porque ele é um bom escritor, entre outras coisas. Mas também pesa uma longa amizade que começou há muitos anos e que aos poucos foi se transformando em colaboração mútua. Essa colaboração resulta da visão de uma identidade de pontos de vista que temos sobre a vida, sobre o mundo, sobre a arte em geral, e que nos permite de vez em quando um encontro nesse terreno onde fazemos alguma coisa em conjunto, na base dessa amizade em que a nossa ótica é a mesma.
Ruy Câmara: Vocês tinham uma parceria na música que foi interrompida há anos. O Estorvo sinaliza a retomada dessa parceria?
Ruy Guerra: É difícil retomar uma parceria com o Chico em termos de música, porque ele, além de ser excelente músico é também um maravilhoso letrista, de modo que ele não precisa de um letrista para completá-lo. Então fica difícil. Só se a gente, por algum motivo, fizer alguma obra teatral, um musical, ou algo que tenha que abrir esse espectro de relação e que então as músicas poderão ser feitas em conjunto. Mas fazer canção com o Chico, eu como letrista, já não tem muito sentido.
Ruy Câmara: Como podemos definir o Estorvo?
Ruy Guerra: Marieta Severo utilizou uma expressão que o define muito bem: “É um filme que anda a trezentos quilômetros na contramão. (Risos) No entanto, como se vê pela reação da crítica, o Estorvo corre o risco de bater de frente e de faltar oxigênio para se encontrar com o público.
Ruy Câmara: Como você recebe essas primeiras críticas?
Ruy Guerra: Recebo com tranqüilidade. Já suspeitava que a crítica não estaria disposta a discutir o filme. De certo modo eu já vim preparado para as opiniões negativas. Isso é natural para um filme que tem uma proposta estética diferenciada, que preza por não se integrar à corrente estética domi-nante, e os críticos contratados também estão dentro dessa corrente. Então, tudo o que foge desses parâmetros, eles se sentem um pouco temerosos de apoiar ou de compreender.
Ruy Câmara: Essa incompreensão era mesmo esperada, ou você contava com um aprofundamento intelectual que pudesse, de algum modo, abrir um debate mais amplo?
Ruy Guerra: Eu já esperava. O que me surpreendeu foi que houvesse uma crítica tão equilibrada na sua negatividade, tão negativa no conjunto. Um importante cineasta argentino me disse que não fizeram crítica alguma. Simplesmente jogaram umas opiniões que são recebidas como crítica. Eu espe-rava uma reação negativa do público, que me surpreendeu com um acolhimento extremamente caloroso. Isso eu não esperava. Até me preparei para receber umas vaias, aqui se vaia muito, ou no máxi-mo uns aplausos diplomáticos, burocráticos, de pura cortesia, mas não aquele acolhimento simpático, com o público todo de pé no Grand Lumièri.
Ruy Câmara: Quando o filme começou, o que você cochichou no ouvido do Chico?
Ruy Guerra: Eu brinquei com ele dizendo: É bom que essa gente guarde umas palmas para o final, porque ao terminar não vai ser bem assim. (Risos) Já da parte da crítica nós esperávamos um pouco mais de aprofundamento da questão central ou talvez uma certa perplexidade.
Ruy Câmara: Você insinua que a crítica não
compreendeu o filme, ou que não se interessou pela te-mática que repropõe mover o expectador de uma postura acomodada, ingênua e imediatista, para co-locá-lo ao nível da interrogação?
Ruy Guerra: Num sentido fenomenológico, a arte é precisamente um meio que dispomos para desvelar aquilo que cotidianamente nos tornam ocultos em nós próprios. O destino do homem e da história depende de lucidez quanto ao agora e já, e nada melhor do que a serena meditação filosófica para instaurar uma nova dimensão crítica no tempo em que vivemos. É tarefa primordial de quem faz arte, ampliar os limites das questões essenciais humanas para além da pura imediatidade. De aí a minha perplexidade. Jamais esperei que a crítica fosse tão preguiçosa, já que não fez nenhuma tentativa para compreender a linguagem do filme, muito menos a estética que propomos. Isso está muito nítido, pelo menos nas matérias que acabamos de ler, sem profundidade reflexiva. Para mim foi uma dupla surpresa, agradável em relação ao público e perplexa ante uma crítica tão preguiçosa em relação ao filme.
Ruy Câmara: Em 1991, Alcion Leite Neto e Roberto Ventura, na Ilustrada da Folha de São Paulo, disseram que no romance Estorvo, falta algo no enredo, que ao final da leitura fica uma leve sensação de vazio. Que o livro vale muito mais pelo que descreve do que pelo que narra. Foi difícil adaptar o livro a filme e o que o levou a isso?
Ruy Guerra: Quando pego um livro que me toca de alguma forma, seja pela sua forma, seja pelo seu significado, que estão sempre imbricados, não faço análises críticas muito aprofundadas, nem me deixo influenciar por considerações feitas às pressas. Quase sempre me deixo levar pela emoção, pela minha compreensão intuitiva do momento. No caso do Estorvo, depois de pronto, voltei a olhar para o filme e tive um olhar extremamente crítico. Aí compreendi duas motivações que me impulsiona-ram a fazê-lo, que não foram totalmente conscientes, mas agora, vendo-o pronto, posso crer que, uma foi a temática existencialista, a outra foi a linguagem, que é circular, que quebra os tempos, unifican-do o tempo num só tempo, o tempo do imaginário, do real, da subjetividade, que sempre foi uma coi-sa que incipientemente me interessou trabalhar. Meus filmes mostram um pouco disso, tanto nos Fu-zis como nos Cafajestes.
Ruy Câmara: Numa análise mais localizada, o filme é uma antítese à sociedade moderna, que é tomada de assalto pela indústria cultural que tem o fito de mecanizá-la, e de cujas antinomias e anta-gonismos nele reaparecem como problemas internos de sua forma. Você fez o Estorvo com a intenção de bater de frente com o cinema dominante ou isso aconteceu por acidente? Se foi, qual é a proposta básica em termos de linguagem e de temática?
Ruy Guerra: No aspecto mais amplo, minha intenção era mesmo bater de frente, e suponho que isso está ocorrendo. A indústria cinematográfica dominante traz no seu bojo todos os elementos do mundo comercial e industrial contemporâneo, qual seja, a de porta-voz da ideologia dominante, uma ideolo-gia que outorga sentido a um suposto contexto hollywoodiano, que nada mais é do que uma pálida representação do real e da circunstância em que vivemos.
Ruy Câmara: Por que o filme incomoda tanto?
Ruy Guerra: Incomoda porque é profundamente existencialista, porque critica a práxis brutal da so-brevivência humana, porque reflete nitidamente o mal-estar real da sociedade prática. Como estágio de cultura, o filme não é monolítico, ao contrário, conota a inabalável recusa em omitir as decisivas questões suscitadas pelo discurso pós-moderno. O que propomos lá no fundo é uma discussão mais clara sobre utilidade e validade do cinema como arte, e não só como entretenimento vulgar.
Ruy Câmara: O incômodo vem também da profundidade da linguagem filosófica, que circunscreve-se nos limites de um homem perdido que se escorre dentro dos próprios entornos?
Ruy Guerra: Também, sobretudo porque representa uma ruptura cultural, inclusive no sentido de episteme, quando questiona a metalinguagem que tem sido usada para tratar dos problemas do nosso tempo. Você repara que o personagem do “Eu” é presença permanente num horizonte fechado, no qual busca as suas verdades, e ao mesmo tempo está sozinho sem saber como se interrogar a si pró-prio. O que incomoda mesmo, suponho, é a inquietação angustiante que estrutura o personagem cen-tral dentro da temporalidade, prendendo-o ao passado, mas ao mesmo tempo lançando-o para o futuro, que também é um mistério, no sentido que não pode ser compreendido através do ente, amiúde indefinido e contraditório.
Ruy Câmara: O termo existencialista pode ser entendido no sentido heideggeriano, ou seja, de um sujeito que se projeta para dentro de si mesmo, mas sempre procurando romper as fronteiras em que está submerso, ou no sentido sartreano, do desvio do indivíduo do seu “eu-essencial” em favor das preocupações que cotidianamente o perturbam?
Ruy Guerra: Quando eu comecei a pensar na questão do existencialismo (você repara que o existen-cialismo moderno, que surge com Kierkegaard, e principalmente o do nosso século, com Heidegger, depois da primeira guerra, e com Sartre, depois da segunda guerra) tem sempre um transito amplo na sociedade a partir dos grandes conflitos, das grandes perturbações e das grandes indecisões, quando o indivíduo se sente perdido. Eu acho que o personagem do “Eu” no Estorvo, tanto no plano da crítica social, quanto numa visão antiestética da sociedade, é profundamente uma anátema existencialista. Até perguntei ao Chico: Você tem lido Heidegger? Ele riu e disse: “Depois dessa guerra em que estamos, a da universalização, o fracasso das ideologias, a ausência do projeto pessoal das pessoas, a perda dos valores humanos, esse personagem tem uma modernidade extraordinária, porque retrata um sujeito sem um projeto de vida, que fica obrigado a grandes opções pessoais e que não tem perspectiva, nem tem como tomar decisões, pois lhe falta tal capacidade.” Isso pode parecer muito abstrato aos juízos gerais, mas é tão onipresente no concreto, que raramente o vinculamos aos tipos e arquéti-pos que se manifestam entre tantas contradições aqui discutidas.
Ruy Câmara: Vê-se que o personagem do “Eu” está fechado dentro de um processo ambivalente e circular. Nesse emaranhado você quer questionar o objeto do pensamento, ou a linguagem que se busca dizer, mas que não rompe o círculo, perdendo a coisa mesma, e com ela a possibilidade de exprimí-la pela linguagem?
Ruy Guerra: Se você reparar bem, e pelo visto reparou, verá que na ação circular do “Eu”, tem uma coisa que deriva do existencialismo sartreano, que é o olhar do outro, o outro como um inferno. O personagem parece até uma ilustração do inferno interior de cada um de nós. É o olhar de alguém que leva sobre ele, que cria a necessidade dele se definir. Como o indivíduo nem sempre tem essa capaci-dade, por estar despreparado, fica profundamente angustiado, uma angústia que é a base da temática do existencialismo, do Ser ou Nada. Ao mesmo tempo, embutido aí tem uma série de subvalores do existencialismo, que inclusive é também humanismo, isso quando Sartre procura integrar com as correntes marxistas, um existencialismo ateu, que não tem o recurso de Deus, em que, portanto, a existência precede a essência, e que o Sartre, e no caso o Chico, conjuntamente, põem esse personagem completamente sem perspectivas, sendo observado pelos olhares de fora, sem poder recorrer aos céus, porque não se coloca aqui o problema religioso, e que depois, como não pode suicidar, (porque no existencialismo o suicídio é a covardia do Ser, é recusado ao indivíduo o exercício do suicídio), então é no confronto com a morte que ocorre o exercício da liberdade mais caótica, que é também a base do existencialismo sem Deus, e sem uma perspectiva dentro da sociedade, gerando essa angús-tia, que é real e que se torna um projeto de vida de muita gente no mundo concreto. Não é como nas pequenas decisões: tomar café ou chá, comer isso ou aquilo. É nas grandes decisões que se manifesta esse existencialismo. Quando o indivíduo é confrontado com a morte, que é a perspectiva final, no caso do filme, ficamos sem saber se ele está ou não preparado para morrer. Nesse sentido o filme é profundamente existencialista.
Ruy Câmara: Vimos nessas últimas décadas, intelectuais falando da morte do existencialismo e no Estorvo o existencialismo parece renascer, não só como arte, mas como expressão da realidade. Com base nos clássicos exemplos de depressão laica, você diria que esse ciclo está se repetindo ou não?
Ruy Guerra: Quando da quebra do idealismo, o existencialismo passa a ter duas correntes: Heidegger é uma delas. Embora tenha sido um católico fideísta e crente no princípio, aos poucos foi se afastan-do do problema religioso dentro do processo filosófico. Não é que negasse a concepção deísta, mas vai se afastando, coloca-a de lado, e quando a corrente existencialista de Sartre, discípulo de Heide-gger, cria uma corrente atéia dentro do existencialismo, muitos intelectuais se afastaram, criando outro rótulo para o problema que se camufla na Filosofia da Existência. O existencialismo, tanto da primeira, como da segunda guerra, inspirou um modo de viver bastante complexo, uma quase recusa aos valores estabelecidos que se refletia no comportamento geral. O sujeito deixava de tomar banho, de cortar o cabelo, fazia canções como ato de revolta contra os valores da sociedade no pós-guerra. Então quando Simone Bevoir começou os movimentos feministas baseados no existencialismo de Sartre, quando os infernos são os outros, com julgamento dos outros sobre si mesmos, toda essa mes-cla de valores um pouco caótica foi dar uma resposta muito dura: o indivíduo com pleno exercício da sua liberdade. O que diz o existencialismo? O homem está sozinho no mundo com a sua liberdade. Inobstante a isso, o homem está sozinho com os outros homens. Quando a sociedade não está junto com ele, o sujeito fica completamente perdido. Essa é a grande questão do filme. O “Eu” não tem o suporte deísta para se refugiar, e é obrigado a exercer a sua liberdade nos seus grandes eixos de defi-nição, donde a angústia, o incômodo de viver vigiado e a relação com os outros, passa a ser caótica, sendo os outros uma ameaça na medida mesma em que ficam olhando pra ele e exigindo comporta-mentos que ele não está em vias de corresponder. Aí precisamente é necessário um aprofundamento crítico. O “Eu” do Estorvo, procura se refugiar na infância, no imaginário, em si mesmo, não sabe para onde fugir, e começa aquele movimento contínuo de peru dentro do círculo, do giz, que fica cir-culando até o fim. De fato há algo que se repete em ciclos. Primeiro lança-se o pavor do olhar, se-gundo, consolida-se a impossibilidade do apelo, e por fim esboça-se uma resposta no horizonte her-menêutico que procura expressar o confronto com a atitude violentadora, uma violência que se justi-fica por um traço de identidade que entifica o Ser no Tempo.
Ruy Câmara: Estamos habituados com sinopses que muitas vezes não enfocam o problema central do filme e nalguns casos até deforma o centro de atenção por onde o enredo ou a concepção estética se move. Qual seria a sinopse mais adequada para o Estorvo?
Ruy Guerra: A sinopse que eu tenho, tanto serve para o livro quanto para o filme. Os dois estão muito próximos. Até a circularidade do livro está bem retratada no filme com muita fidelidade, o que é ra-ro. Eu diria que se trata de um sujeito desenquadrado dentro da sociedade, não porque ele queira estar desenquadrado, ou por ser autista, mas por ser formado dentro de uma sociedade que não oferece espaço para ele, e por isso se sente obrigado a tomar uma decisão por um olhar de fora. Nesse mo-mento ele entra em pânico e não tem para quem ou para onde apelar. Numa frase: trata-se de um ho-mem em pânico, debaixo de um olhar que exige dele uma definição dentro da sociedade. Este pânico a que me refiro é a angústia.
Ruy Câmara: Num sentido mais amplo, além da preocupação com a utilidade das imagens, como você conseguiu solucionar o impasse estético? Por exemplo, para exprimir as idéias através de um personagem mudo?
Ruy Guerra: No plano das idéias, num prisma mais filosófico, procurei realçar uma postura existen-cialista que estava um pouco adormecida e que agora está acontecendo na sociedade. Podemos falar de uma volta desse movimento existencial, com características novas, mas que vai ficar muito pró-ximo da corrente sartreana. No âmbito da dramaturgia há uma grande preocupação, que é justamente a preocupação de que para idéias novas serem expostas, se faz necessário encontrar formas novas. Você não pode, como numa fábrica de salsicha, em que se retira o conteúdo e põe outro conteúdo dentro da mesma forma. Nesse âmbito há uma busca constante por uma linguagem mais moderna que possa tratar dessa temática. Não é possível tratar de uma temática nova com formas velhas. Nes-se ponto procuro ser altamente transgressor.
Ruy Câmara: Você quer dizer que o filme inaugura uma nova etapa da dramaturgia cinematográfica?
Ruy Guerra: Talvez. É uma linguagem extremamente radical no sentido em que vai contra a drama-turgia hegemônica que está vigorando no cinema de hoje. Nesse sentido é radicalmente oposta. Não sei se inaugura, mas pelo menos tem essa postura, essa lucidez de saber que está contra o padrão vigente. É aquela frase que citei: está a trezentos quilômetros na contra-mão.
Ruy Câmara: Você falou de épocas em que os idealistas acabaram em grande maioria expatriados do Brasil, outros foram torturados, presos e alguns até eliminados. O que você fez para sobreviver?
Ruy Guerra: Como não havia trabalho no Brasil, uma parte do tempo também fiquei fora do país. A outra parte foi quando comecei a virar um letrista de música para sobreviver. Eu estava censurado automaticamente em todos os meios econômicos de produção de filmes. Mesmo assim fiz Os Cafajestes em 1963, Os Fuzis em 1964 e só consegui fazer outro filme em 1969, quando saiu O Estrangeiro. Em 1970 fiz A Queda, filme de baixo orçamento. E novamente, quando entrou o período Médici, só pude fazer outro filme em 1976. Nesse tempo, como não era possível realizar nada, eu sobrevivia na casa de amigos, ia à praia pegar tatuí para cozinhar. Vivia-se com muita saúde e tinha que se mostrar feliz. Naquele tempo ainda existia tatuí em Ipanema, hoje, ecologicamente já não existe mais. E com os trocados que caíam da música, quando as letras passavam pelo crivo da censura, eu ia vivendo. Havia muita cooperação e solidariedade. De vez em quando aparecia uma mulher bonita que se engraçava e pagava um jantar, um filme, um chope. Aqueles tempos não eram tempos de preguiça, e sim de total impossibilidade de comunicação com a censura. Passado um longo período no anonimato, fiz em 1985, Ópera do Malandro, depois fiz Quarup, em 1988, no meio disso fiz Palomera, e novamente em 1992, fiz Me Alquila para Soñar. Quarup foi um filme que a crítica recebeu com bastan-te má-vontade, mas foi um grande sucesso de público. Mais de um milhão de espectadores assistiram ao filme, só no Brasil. Não foi além disso porque os sistemas de distribuição não permitiam, como ainda hoje ocorre com o cinema nacional, o que é lastimável. Depois veio o período do Collor, que arrasou com o cinema nacional e comigo junto. Antes, a impossibilidade de realizar filmes era individualizada. Mas com o Collor foi um assassinato em série. O Collor era um serial-killer, que para acabar com o cinema brasileiro, matou todos os cineastas de uma vez só. Basta ver que antes produzíamos oitenta longas-metragens por ano, e de uma hora para outra o Brasil produziu zero filme. Durante os três anos do governo Collor (risos), exceto Os Trapalhões e Xuxa, quase nada foi realizado. Os dados estão aí.
Ruy Câmara: Por que é tão difícil a sobrevivência no meio artístico brasileiro?
Ruy Guerra: Não só no plano artístico, no meio intelectual também. O que nos falta ainda são os meios de produção, que estão sob o controle daqueles que dominam a economia do país, e por extensão exercem o poder de frear o desenvolvimento dessas atividades, que são fundamentais para o de-senvolvimento geral, inclusive da economia. É essa incompreensão que nos deixa atônitos e que muitas vezes nos põe sob uma certa invisibilidade.
Ruy Câmara: Numa entrevista à revista Cult, a escritora Lígia Fagundes Teles disse que toda a di-nheirama que não for aproveitada em creches, escolas e hospitais, será desperdiçada em prisões. Você concorda com isso?
Ruy Guerra: Infelizmente é uma triste verdade. Eu tenho impressão que é isso mesmo. Ao contrário disso, estão criando mecanismos que assoberba os êxodos internos, fatos que irão agravar o já agra-vadíssimo caos urbano. As pessoas despreparadas são de algum modo induzidas a irem aventurar nas metrópoles, onde perdem as suas identidades e ganham outras ainda mais deformadas, aumentando a onda de violência, de criminalidade, e por fim uma grande parte fica sumariamente excluída do pro-cesso. Não há por parte das elites uma preocupação objetiva quanto ao problema, só quando alguém arromba a sua porta. Por isso um pai de família sem trabalho, sem perspectiva de um amanhã, é levado a roubar. Do roubo ao assassinato é um acidente, e do assassinato à marginalidade absoluta, é outro. Esses acidentes já não são ocasionais e já batem à porta da classe média, que está esmagada fe-rozmente. Hoje as pessoas estão vivendo em pequenas fortalezas para conter essa onda. Nesse aspecto o país está numa situação caótica. Só não vê quem é cego ou burro.
Ruy Câmara: A depressão patológica que vem afetando a indústria cultural brasileira nas últimas dé-cadas, tem cura?
Ruy Guerra: O Brasil e a cultura estão vinculados num todo integrado, tanto no seu olhar como nas suas possibilidades de expressão. É evidente que todos os mecanismos de produção de cultura que não estejam dentro da corrente oficial, sofrem uma censura econômica que é velada pela existente. Então quando o Gérard Depardieu pergunta porque o Ruy Guerra não faz filmes mais comprometidos com a realidade do Brasil, esquece que não há recursos disponíveis para isso. Qualquer grande projeto nesse sentido aborta, porque simplesmente não interessa, e quando se consegue fazer algo mais comprometido, esbarra-se na crítica destrutiva e na falta de espaço para exibição do trabalho. Então é muito fácil alguém cobrar uma postura comprometida dos intelectuais brasileiros quando se olha de fora para dentro.
Ruy Câmara: Isso implica que, para sobreviver, o cineasta tem que seguir o curso da ordem dominante?
Ruy Guerra: Seguir não, driblar os meios de produção oficiais para conseguir realizar seus projetos.
Ruy Câmara: Você se declara, como afirma o Chico Buarque no prefácio de 20 Navios, um passageiro em trânsito. Podemos tomar isso num sentido mais transcendental, ou numa perspectiva mais realista de viver como nômade?
Ruy Guerra: Uma realidade é conseqüência da outra. Eu estou sempre em trânsito porque quando quero exprimir as minhas convicções e não encontro espaço para isso, sou obrigado a passar para outro lugar. Ou então há longos períodos de silêncio, como já aconteceu na época da ditadura, em que não se podia fazer nada contra. Se você olhar para a minha filmografia, verá que tem hiatos de dez anos em que não realizo filmes, não por preguiça, mas porque não havia condições para me exprimir. Por outro lado, quando não posso me exprimir livremente, eu mesmo aborto o projeto. Fazer filmes que não me interessam, não me convém. Nesse hiatos, da ditadura militar, do Collor, tive de deixar o país para sobreviver, do contrário morreria de fome, porque não se pode confiar nos direitos autorais. Aqui só paga quem é honesto, e a maioria é desonesta. Portanto, sou nômade por circunstâncias e não porque assim quero viver.
Ruy Câmara: Qual será o próximo projeto?
Ruy Guerra: Pensei em fazer o Quase Memória, baseado no livro homônimo do Carlos Heitor Cony, que está em fase de captação no Brasil e espero que não haja embaraços. Outro projeto, que é antigo, é fazer Três por Quatro, o terceiro filme da trilogia: Os fuzis e A Queda. Três por Quatro é a continuação do mesmo personagem dos filmes já citados.
Ruy Câmara: José Saramago, n’Os Cadernos de Lanzarote, p.49, narrando um almoço com Gabriel Garcia Márquez em 25 de maio de 1993, conta que o autor de Cem Anos de Solidão, na tentativa de solucionar um problema de dramaturgia na passagem a filme do seu conta La Santa, teria dito a você por telefone: vocês stalinistas não acreditam na realidade. Há alguma verdade nisso?
Ruy Guerra: Não lembro desse telefonema do Garcia Márquez. Se isso aconteceu deve ter sido com O Milagre em Roma. Mas de qualquer maneira duvido muito que ele me chamasse de stalinista ou que pensasse em mim como tal. Nós temos um processo de trabalho muito aberto que nos permite expor as nossas convicções de maneira franca e respeitosa. Sempre nos pautamos nisso. Tem até um livro publicado no qual ele diz que prefere trabalhar comigo no cinema, justamente porque eu não costumo aceitar as primeiras soluções, coisa que ele também acha muito útil ao processo criativo. Mas como o Garcia Márquez é um provocador incorrigível e gosta de espicaçar. Pode até ter dito isso, que é uma expressão emblemática, para temperar o almoço ou para radicalizar o debate com José Saramago.
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Ruy Câmara: Como e em que circunstancia começou a sua amizade com Garcia Márquez?
Ruy Guerra: Começou em Barcelona. Eu tinha feito um filme que disseram ser muito parecido com Cem Anos de Solidão, livro que eu não havia lido até então. Depois, quando o encontrei numa festa de amigos comuns, comentamos sobre o assunto, aí então eu disse que meu filme era parecido com o seu romance. Ele riu e retrucou: “Não senhor, você filmou um conto meu antes de ser escrito.” Rimos e bebemos muito. Ele achou o meu filme próximo do seu universo literário, eu achei a sua literatura próxima do meu universo cinematográfico, então resolvemos fazer um filme juntos. De aí em diante passamos a nos encontrar todas as noites. Ele conta isso numa crônica. Bebíamos em todos os bares de Barcelona e depois de dez anos de convívio permanente, fizemos Erendira.
Ruy Câmara: Até que ponto você considera o enraizamento ideológico, tanto o de direita quanto o de esquerda, uma paralisia intelectual?
Ruy Guerra: Acho que o artista não pode ser partidário, no sentido de filiação, porque a vocação de qualquer partido é a tomada de poder, e a tomada de poder implica em ações táticas, objetivas e com-prometidas. O artista deve ser estratégico, de certo modo independente, e para ser independente não pode estar vinculado aos interesses momentâneos. Penso que o artista, numa breve definição, deve ter uma visão mais aberta e bem mais ampla da realidade. No meu caso, apesar da simpatia por certos partidos, nunca aceitei me filiar a nenhum, porque preciso salvaguardar o meu direito de crítica e tratar a realidade com uma visão mais aberta.
Ruy Câmara: Você ainda sustenta uma perspectiva que repropõe as teorias marxistas ou algo mudou nesses embustes políticos?
Ruy Guerra: A chamada crise ou falências das ideologias é mais um slogan do que uma realidade. As ideologias não falharam, as ditaduras sim. As ideologias continuam vivas e as utopias continuam permanentes, até porque o homem não vive sem utopias. Portanto são os controles, as mídias e a vi-são um pouco acovardada de uns intelectuais que renunciaram um passado que conduziu toda a sua vida e que de repente parece que renasceram porque caiu um muro em Berlim. Nesse ponto eu conti-nuo muito próximo dos meus dezoito anos, só que com mais experiência.
Ruy Câmara: Há alguma incompatibilidade em ser poeta, letrista, ator, ensaísta, diretor de cinema e professor universitário?
Ruy Guerra: Tudo isso é uma fusão. O cinema obriga a uma interdisciplinaridade. No meu caso, tal-vez eu tenha desenvolvido esses outros lados, também pela minha trajetória de cineasta quase bissexto. Bissexto devido a essas circunstâncias da vida. Então nos intervalos entre um e outro filme, eu vou fazendo crônicas, música, escrevendo livros, sendo professor de cinema na Gama Filho, e desse modo vou abrindo um leque de atuação. Mas se eu pudesse fazer um filme a cada dois anos, possivelmente eu não estaria exercendo outros tipos de atividades.
Ruy Câmara: Que conselhos você daria ao Governo brasileiro para a reconstrução da indústria cine-matográfica?
Ruy Guerra: Nenhum, porque não seria ouvido. Ninguém repara que a sociedade brasileira vem sendo re-colonizada pelo cinema americano, do mocinho e do bandido, que domina pelo equivalente. Isso é uma saída estúpida para uma nação com tantas possibilidades. Não é compreensão que falta, mas ação concreta de um governo mais comprometido com nossos valores.
Ruy Câmara: Como sabemos, as instituições nacionais subestimam os pensadores independentes. Você acha que no Brasil ainda há espaço para o pensador solitário?
Ruy Guerra: Esse sempre existirá e sempre haverá um espaço para ele, até porque o exercício da sua solidão o obriga a isso. Num país onde tudo vira ao avesso numa canetada despropositada, é muito duro ser pensador. Isso o obriga a longos silêncios, e nalguns casos, eternos.
Ruy Câmara: Em que fase se encontra o projeto de filmar Levantado do Chão, de José Saramago?
Ruy Guerra: Tenho outro projeto com um importante produtor português que pretende filmar uma obra do Saramago, que não se restringe obrigatoriamente ao Levantado do Chão. Estamos caminhan-do nesse sentido, mas muita coisa precisa ser definida com o Saramago. Nem sei se ele tem conhe-cimento disso, pois ainda não se manifestou. Mas me agradaria muito filmar uma novela do Sarama-go, a quem, muito admiro.
Ruy Câmara: Para finalizar, você continua ateu?
Ruy Guerra: Sim, continuo ateu pela graça de Deus. Agora me diga em que pé está seu Romance e quando pretende lança-lo no Brasil?
Ruy Câmara: Risos… Acho que em breve!!
RESUMO BIOGRÁFICO:
Ruy Guerra nasceu em 22 de agosto de 1931, em Maputo, Moçambique e reside no Brasil desde 1958, com prolongada estadia na França, Espanha, Portugal, Grécia e Cuba. Tem duas filhas, Janaína, do casamento com Leila Diniz e Dandara, com a atriz Cláudia Ohana.
Ruy Câmara, é escritor, dramaturgo e sociólogo, autor de Cantos de Outono, o romance da vida de Lautréamont, distinguida 1º Finalista do Prêmio JABUTI 2004 – pela Câmara Brasileira do Livro; Ganhador do Prêmio de Ficção 2004 – pela Academia Brasileira de Letras e ganhador do Prêmio, Melhor Romance Traduzido na Romênia – pela Asociatia Scriitorilor Bucuresti em 2009.