Especial para O Globo, por Ruy Câmara
Letícia do Pontal, cavaleira andante que despertou a palavra e o terror! A engenhosa Letícia do Pontal, de Carlos Nejar. Editora Objetiva, 308 páginas. Homero narrou as batalhas dos gregos e troianos; Tito Lívio dos romanos; Joanot Martorell narrou as aventuras de Tirant lo Blanc, no tempo em que no céu só havia sete planetas; e Carlos Neja ![]() Nessa obra, assim como nas anteriores de Nejar (“O Evangelho segundo o vento” e “O Livro do Peregrino”) não há uma lógica inflexível presidindo as ações dos personagens que atuam por difusas fronteiras no enredo. A poesia, de tão abundante, imobiliza completamente a ação para afirmar a ubiqüidade do seu criador. À semelhança de “Les chants de Maldoror”, de Lautréamont, o que define as incursões de Letícia não são as forças físicas de matar ou morrer numa selva episódica, mas a ousadia inovadora — poética e filosófica — de um narrador que tem pleno domínio da palavra e da linguagem. Contudo, quem decide e seduz o leitor é uma personagem feminina, a Nuvem Letícia, depositária das virtudes cavaleirescas, que representa todas as mulheres nos seus anseios e conflitos. Ela se apresenta ao leitor em busca da verdade e a primeira verdade que nos mostra é a incapacidade do homem viver em harmonia com o seu entorno. Não é custoso afirmar que a estrutura composicional de “A engenhosa Letícia do Pontal” é um desafio à crítica literária especializada e também aos exegetas mais experientes, pois se trata de uma narrativa que surpreende pelos sobressaltos filosóficos, pela fusão inesperada e desconcertante da perspectiva antológica com a expressão poética, e também pelo desapego formal do autor com os rigores da lógica aristotélica de narrar. Ouso dizer que é uma obra de inesgotável conteúdo, que não corre o risco de caducar porque se mantém afastada do tempo. Sua leitura fez-me lembrar o retorno de Mondragón à Montevidéu, tendo ele de passar pelo inferno da sintaxe e sofrer todos os castigos parecidos com as figuras de retórica. E aqui tomo de empréstimo a voz possante de Mario Vargas Llosa, para dizer que, num romance a procedência dos materiais da criação importa menos do que o uso que deles faça o autor; tudo depende do proveito que se tire, pois na criação literária o fim justifica os meios, afinal o romance é a vida lida, inventada, refeita, mudada e acrescentada para ser vivida mais intensa e extensamente do que nossa a condição nos possibilita. Nesse romance, para a glória do gênero poético, são as palavras e as máximas filosóficas, mais do que as ações e o próprio enredo, o fundamento do universo metafórico de Nejar. A idéia racional que tangencia o delírio narrativo rompe o pacto com o verossímil, perpassando para o real como se o fito fosse unicamente dar provas de que a sombra de uma nuvem não é a nuvem propriamente dita, mas o reflexo de uma luz superior — a poesia — que se derrama e se projeta de outra forma no solo narrativo, resultando numa imagem ampliada da arte, arte que não pode ser retocada com as mãos, mas pode ser admirada e sentida num simples golpe de vista. A Nuvem, enquanto metáfora, é um ente quixotesco que se expressa com o fito de humanizar o homem e a sua essência mais profunda, que se constitui de um fundamento de uma vontade latente de preservar a sua incerta existência carnal. Letícia, a Nuvem, assume o caráter de um espírito conselheiro e transgressor, que atenta contra o senso-comum e atinge a moral artificializada de um tempo atroz que vai se tornando cada vez mais caótico. Ela, com seus ardis, e movida pelo idealismo heróico de fazer o bem, quer, a todo custo, amenizar a rudeza da condição humana e, de alguma forma, passa para o leitor a angústia cotidiana e o absurdo da vida. Obviamente que é um romance estranho, morada de imagens incomuns. Mas antes pode ser uma crítica ao tempo, e mais, é um livro feito de pedaços do cotidiano, ou de pedaços de um poeta que se estira para dar as mãos aos demais, já extintos, e que inventa uma Nuvem para nos dizer que a vida real é feita igualmente de pedaços de amor, de pequenos fragmentos de tolerância e de mínimas escolhas que guardamos na memória. Só se filosofa com o possível e, nesse sentido, Letícia é a composição da própria vida de Nejar, uma composição que só pode ser feita com arte ou com pedaços da arte que conformam a vida de um poeta de ofício, ou de um romancista que revela um poeta ainda maior, quando consegue inventar uma realidade destituída do realismo da vida comum. O inverossímil ficcional, muitas vezes, é verdade inteira e, nesse mundo caotizado pela mentira, tudo é verossímil quando se inventa. Assim está escrito nos portais ebúrneos de Letícia, onde a imortalidade é impoluta e quem não é Nuvem, não adianta forçar, jamais fará chover. RUY CÂMARA é romancista, autor de “Cantos de Outono” Rio de Janeiro, 11 de outubro de 2003. |