“20 Navios” do escritor Ruy Guerra, é um livro surpreendente, a começar pelo prefácio do Chico Buarque. O Chico norteia os leitores, quando o diz que Ruy Guerra é Alguém em Trânsito. Bela definição, exata definição para quem se deixa fluir por inteiro nas linhas de “20 Navios”, e se mantém intacto, numa proporção tão exata que chega a ultrapassar a ambiguidade nacionalista confessada em “Esta Janela”.
“Alguém em Trânsito”! Deve ser alguém disposto a cumprir um exílio perpétuo, ou durante “Sessenta minutos de solidão”, em companhia dos parceiros: Vargas Llosa e Garcia Marques, Fidel Castro e Tomás Gutiérrez. Também pode ser alguém que não traz saudades na… “Memória, para que te quero?”. Ou quem se emociona na chegada quando sente “Um Cheiro de Manga” estampado no sorriso amarelado que encobre a negritude epidérmica de um meio africano; ou Alguém que se descobre navegando nas águas turbulentas da problematização total, rumo ao desconhecido, rumo a Utopia, e desembarca em mundos imperfeitos. Também pode ser quem sonha com um mundo sem fronteiras geográficas; sem a miséria imposta, que dói nos olhos dos sensíveis; ou ainda, Alguém que retira dos grunhidos e das sombras, a luz dos seus filmes. E aqui fica uma questão pertinente: Será que o ato de sofrer incompreensões e amarguras, e de exprimí-las em textos suaves, densos de poesias, concebidos na solidão de uma noite em qualquer parte do mundo: Moçambique, Rio de Janeiro, Havana, Lisboa, Paris, Barcelona, respirando fumaça de um Cohiba feito à mão, não é uma forma de libertação de um duelo ideológico, ou talvez a própria existência se manifestando numa tentativa de buscar no ignoto do ser literário – o escritor -, alternativas que o justifique?

Alguém em Trânsito… Alguém que bebeu nas fontes do pensamento universal e mais recentemente em Szamozi, de quem nos falou com entusiasmo sobre “Tempo e Espaço” por três horas ininterruptas em mesa de bar. Ou ainda, Alguém com uma ironia reservada de um ideal, ideal capaz de persuadir adversários para a mesma luta.
Em “20 Navios”, o escritor parece estar bifurcado entre Platão e Sócrates; quando de um lado, busca incessantemente explicar o mundo, e do outro, quer analisá-lo com a frieza racional de uma arena, e ao mesmo tempo é capaz de permitir que o sentimento, a paixão, e por que não dizer; o amor à vida, esclareça-se e baste-se diante de si mesmo, quando o sente vivo no coração de Janaina, Dandara, e Léo – sua Leonor Arocha.
Tudo isso não deve ser só isso! “Alguém em Trânsito” sugere algo mais, para além do que é simplesmente a ultrapassagem de um limite. A expressão conduziu-me aos vastos campos da metafísica, onde permaneço com minhas perpétuas dúvidas. Dúvidas cruciantes sobre o caos social, sobre a utopia de um mundo mais solidário – um devir sem fim, onde os desejos conflitantes retirados do íntimo, nos impulsiona para uma transgressão de certos valores cotidianos. E não são poucos os valores necrosados por uma sociedade que se plebeíza em plena modernidade.
“20 Navios”, nos insulta o sentimento e a vontade de alargar os horizontes da mente e do espírito, sem perdas de conteúdo ideológico, de sotaque, de idioma, de estética.
Em “Esta Janela”, o escritor confessa sua esquizofrênica-latino-africanidade, sua postura mais coerente consigo mesmo. São reminiscências e angústias plenamente justificadas para quem vive quase inadaptado ao grotesco. Mergulhados em “Esta Janela”, somos invadidos pelos mistérios de uma noite fria de exílio, na solidão lisboeta, onde sentimos a guimba da saudade dos amigos exilados amargando na boca… e uma vontade comedida de falar sobre a imperpetuabilidade das leis autoritárias.
O livro infunde no leitor mais atento, um sentimento de coletividade, de liberdade, de respeito à individualidade das gentes miserabilizadas pelas contradições de um poderoso sistema.
Dito isto, quero afirmar que me julgo incompetente para formular uma anatomia crítica sobre a dimensão exata de “20 Navios”. Parece-me certo dizer: não se pode separar – nesse caso – a obra do autor. O Humanismo de Ruy Guerra, impera e supera o Realismo e outros ismos em seu livro, já que um e o outro, ou os dois, são únicos, e por serem únicos não se submetem a nenhuma imposição de limites estéticos, éticos ou de instrumentalização.
Portanto, conhecer o Escritor Ruy Guerra, na atmosfera suave de “20 Navios”, é um prazer eterno. Eterno porque os sentidos são capacidades insuficientes para retirar da suavidade da obra, a totalidade do que pretendeu dizer o Autor.
Finalizando, “ 20 Navios” é o Autor, e o Autor é a matéria prima da obra, portanto, seu próprio laboratório.
Ruy Câmara