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Casa de Pabrlo Neruda

Um Acorde Estúpido – Coluna Café Expresso, Jornal O Povo – 05/08/1994

Um Acorde Estúpido

Cada tema sabe se quer ser escrito ou não. Sempre que escrevo sinto-me duplamente acuado, de um lado pela fera da inquietação e do outro pelo domador da razão. Quantos problemas sem solução e nem sempre temos para quem apelar. Sei apenas que a página continua em branco, mas o barulho infernal na cidade não está sendo indulgente. Agora mesmo o leitor deve estar ouvindo o som melodioso do silêncio sendo abafado brutalmente por um acorde estúpido, ou pela voz irritante de um desses propagandistas ordinários, ou sendo torturado pelo timbre atroz de uma dupla de “humoristas caça-níqueis” que agora mesmo passa por aqui gritando com uma voz de velha louca e histérica. Exceto esses agentes do barulho, culpados já não há para a minha inquietação, mas as autoridades de Fortaleza precisam justificar a utilidade de uma repartição pública sem função que atende inutilmente por: Disque Silêncio. 

Notívago

Às 11 da noite, quando a balbúrdia sonora recrudesceu um pouco na Beira Mar, acabava eu de virar a última página do Ensaio do Ponto obra exemplarmente bem escrita e esteticamente perfeita, graças à pena e ao talento do inquieto editor da Revista Época, Luís Antônio Giron -, eis que o celular tiniu. Era o escritor Antônio Torres, autor do clássico raríssimo, Um cão uivando para a lua. Perguntou-me pelos amigos que temos em Fortaleza, falou-me do seu périplo literário nas  universidades cariocas, em seguida disse-me da sua vinda a Fortaleza para a Bienal Internacional do Livro e por fim nos perdoamos mutuamente pelo whisky que não tomamos na Livraria da Travessa, nem na festa da minha premiação na ABL.

O notívago José Telles, que aguardava na linha para me dizer que a revista do Ideal Clube traria uma boa surpresa, ao ser informado da vinda dos Antônio’s, Torres e Skármeta para a Bienal do Livro, e de outros ilustres autores que eu havia convidado, surpreendeu-me com esta: “Então vamos providenciar muito whisky, amigo.” Ao ouvir o meu “sim” sem tanta convicção, ele arrematou: “Haja whisky e haja tira-gosto! Com o poeta Aírton Monte de férias em plena bienal, ainda mais sendo escoltado por uma bando de poetas-etílicos (Carlos Augusto Viana, Juarez Leitão, Barros Pinho e outros), não sei o que vai ser de nós sem o patrocínio de nenhuma instituição de cultura desse Estado miserável.

Voz do infinito

No silêncio da madrugada voltei ao Ensaio do Ponto, do Giron, fiz as anotações no corpo do livro, tomei um café e fui ao romance O Carteiro e o Poeta, de Antonio Skármeta, o autor que de joelhos pediu um prefácio a Pablo Neruda para um livro que ainda não existia e que só viria a aparecer 14 anos depois.  Se pensarmos que nesse período Mario Vargas Llosa publicou Conversa na catedralA tia Júlia e o escritor, Pantaleão e as visitadoras, e A guerra do fim do mundo, podemos adivinhar que o António Skármeta ou era muito zeloso com o ofício ou devia ser tão preguiçoso quanto o eram Neruda e seu carteiro, Mario Jiménez.

Enquanto lia esse primor de livro, ouvindo o mar deslizando nas rocas, aqui em frente, meu pensamento ia e vinha como as ondas, trazendo as imagens vivíssimas da minha última viagem ao Chile.

Mal havia escapado de uma tempestuosa experiência nos Andes, onde passei uma noite na infernação de uma geada intensíssima, lá nos cumes de cinco mil metros de altitude, sendo mumificado, ora pelo calor de um fogaréu medíocre, ora recebendo as friagens que invadiam a velha cabana de madeira, eis que minha musa me convida para um passeio no plano rasteiro, em Isla Negra.

A hipótese de reverenciar a memória do grande timoneiro de terra firme era deveras sedutora. Alugamos um carro e lá chegamos. A casa de Dom Pablo Neruda parecia bem cuidada, assim como a mobília, as louças e as coleções de tudo o que ele ia juntando durante as viagens reais pelo mundo. No guarda-roupas, tudo bem guardado, sobretudo o terno xadrez, a boina basca e o sapato de bico branco, trajes com os quais recebera o Nobel da Literatura de 1971.

Ao lado da casa, seu barco permanecia encalhado, com a proa apontando para o mar. Lembro-me que ao morrer daquela tarde brumada, minha musa estranhou quando lhe pedi que me deixasse sozinho por uns istantes e embarquei com Neruda e seus amigos que vinham de todas as partes do mundo para uma aventura singular e imaginária no oceano das metáforas.

Supondo que ouvia mil vozes evocando a solidão de um barco fantasma flutuando na bruma do Pacífico, desembarquei reprimindo o pranto e fui depositar uma pedrinha na tumba do poeta, erigida adiante de sua casa-nau, sobre umas rochas vulcânicas, às margens do oceano, onde jaz também Mathilda, sua terceira e última mulher.

O alvor já despontava quando terminei de ler a obra que inspirou o inesquecível filme, O Carteiro e o Poeta. E quem haverá de esquecer da cena terna em que Neruda, já ciente da sua enfermidade terminal no exílio parisiense, enfia sua voz numa gaiola que canta e a envia com um pedido a Mario Jiménez?

“Mário, quero que você vá com este gravador passeando pela Ilha Negra e grave todos os sons e ruídos que vá encontrando. Minha saúde não anda nada bem. Sinto falta do mar. Sinto falta dos pássaros. Mande para mim os sons de minha casa. Entre no jardim e faça soar os sinos…

Não há nada que soe tão bem como a palavra sino se a penduramos num campanário junto ao mar. E depois, vá até as pedras e grave a arrebentação das ondas. E se ouvir gaivotas, grave. E se ouvir o silêncio das estrelas siderais, grave…”E Mário saiu catando sons e lufadas de vento, só possíveis no espaço poético que faz ressoar a voz do silêncio, entre uma e outra onda que vem e vai ao infinito.   

FILME COMPLETO:   

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Ruy Câmara é autor de “Cantos de Outono, o romance da vida de Lautréamont”, Editora Record, vencedor do Prêmio JABUTI e do Prêmio de Ficção da  Academia Brasileira de Letras, na categoria de Melhor Romance de 2004.

 

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