Não há acaso, nem coincidência; o que há é circunstância e circunstância criada é fato consumado.
Em sendo duas as circunstâncias que nos determinam nas trilhas incertas da vida, em primeira instância, as próprias circunstâncias, e só depois, as possibilidades circunstanciais, o romancista, dramaturgo e poeta português, José Saramago, autor da mais importante obra escrita em língua portuguesa neste século, tem bastante razão quando afirma laconicamente que compete à humanidade providenciar as suas circunstâncias mais humanamente.
A síntese a que fizemos menção e que invalida o acaso e a coincidência, enquanto fixa no homem as responsabilidades por suas circunstâncias materiais e espirituais, vinha ocupando os meus pensamentos enquanto entrávamos, eu e Rossana, no Palácio São Clemente, residência oficial do cônsul de Portugal no Rio de Janeiro, na noite de 22 de abril de 1999, quando para lá fomos em companhia do Poeta Ivan Junqueira e de sua mulher, Cecília Costa, editora do caderno “Prosa e Verso” do Jornal O Globo, quem gentilmente fez chegar em nossas mãos o convite para um encontro mais reservado com o Nobel da Literatura.
Transitando nos amplos espaços do palácio e admirado com tantas ilustres presenças, inferi sobre outras verdades bem diferentes do contexto em que situam-se eminentes autores nacionais, já admitindo que não existe acaso nem coincidência na trajetória de um escritor cônscio do seu ofício, do contrário, não haveríamos de entender como a ficção mais absurda, pode ter ancoragem no real e concreto mundo, este em que pisamos e que, apesar de tantos inventos fantásticos, ainda tem o livro como o mais poderoso instrumento de civilizar com palavras.
Tal hipótese, a da negação da coincidência e do acaso, ampliou-se ainda mais quando, atrás de nós, estrondeou a voz de José Saramago. Dizia algo para Pilar del Rio, sua mulher e eu entendi que ele estava assombrado por haver se tornado o autor mais festejado do mundo por conta de um prêmio de prestígio internacional e não porque teria sido lido por todas aquelas pessoas. Súbito, nos olhamos para eles, eles para nós, sorrimos e então o casal nos surpreendeu com simpáticos cumprimentos. Ali não cabiam manifestações inoportunas, nem longas apresentações da nossa parte, da parte deles também não, já sabíamos quem eram, o mundo inteiro sabe.
O momento mais tumultuado foi justamente quando as pessoas começaram a rodear-nos, enquanto os fotógrafos iam trabalhando como podiam para registrar o encontro. Lá adiante vinha o Poeta Gerardo Mello Mourão, com um traje impecável, com as mãos para trás, e perguntei ao ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, se ele conhecia Bardo das Ipueiras, autor de Invenção do Mar, ganhador do Prêmio Jabuti daquele ano, e se podíamos registrar aquele histórico encontro. “Claro, que venha” respondeu Saramago, “cá estamos, senão até lá vamos todos”, disse sorrindo, e logo abriu espaço. Nesse momento, Pilar Del Rio já havia sido roubada da cena para compor uma foto com o casal Paulo Coelho.
Prolongar conversas era impossível e até mesmo inconveniente, como inconveniente e pouco profícuo foi conversar à sós com José Saramago e Pilar del Rio, diante de tantos olhares intrigados, afinal, à época eu era um autor completamente desconhecido e sequer havia publicado “Cantos de Outono” o meu primeiro romance.
Aos poucos o grande salão ia ficando cada vez mais apinhado de gente, como abarrotado vai ficando também o mercado com os livros de auto-ajuda e baixa ajuda, o que me fez duvidar se de fato aquelas personalidades tão ilustres estavam ali pela festa ou porque compreendiam a importância da obra de um autor comprometido com as idéias.
Ainda que anteriormente narrada as circunstâncias do encontro com José Saramago e Pilar del Rio, omitimos como ali chegamos (oxalá não tenha sido por acaso) e melhor é não ignorarmos o que parece fortuito nas estradas da vida, pois que, naquele lugar e instante, nada ocorreu fora das situações de contiguidade, tampouco por mera coincidência (vocábulo este que substantivamente a nada explica e levianamente a tudo justifica) já que o termo coincidir carrega em si o resultado de uma ação anterior, no caso, o fato de eu ser amigo do romancista Aírton Maranhão, responsável pela minha irmandade com o poeta José Alcides Pinto; quem, por sua vez, irmanou-me com os poetas Gerardo Mello Mourão e Ivan Junqueira e este último aproximou-me de Cecília Costa, quem me apresentou a Pilar e esta a Saramago, tudo isso num encadeamento que não está circunscrito nos limites de um verbo no infinitivo, pois o termo coincidir, a equiparar-se com o que designa o indeterminado, não faz sentido algum, afinal, quando decidimos ir ao Rio de Janeiro para rever alguns amigos, muito provavelmente o que estaria por acontecer, iria se cumprir a cada passo ou impulso dado naquela direção.
Enquanto o público ia saciando os paladares mais exigentes com vinho da melhor safra do Alentejo, o barulho ao fundo do salão aumentava tanto, a ponto de ouvirmos no final dos discursos, José Saramago garantir aos convidados que, quando algum escritor brasileiro chegar nas terras portuguesas para fazer uma conferência, terá ele uma audiência que o ouvirá educadamente silente.
Eu corei de vergonha, não só por isso, mas sobretudo quando em dado momento, Saramago falou do marasmo intelectual que nos afeta a todos. Na seqüência ele lamentou a falta de cooperação cultural entre os agrupamentos de escritores; criticou a crítica pelo desprezo aos chamados autores regionais; desafiou as autoridades luso-brasileiras ao propor uma integração íbero-afro-latino-americana (civilização composta de seis 600 milhões de indivíduos) e por fim, quando deu a dimensão do universo lusófono (Brasil, Portugal, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Moçambique, Angola, Timor Leste, Macao e Goa) tive vontade de pregar um susto na audiência, dizendo: “Quem leu de fato a obra de José Saramago, levante a mão.”
Obviamente que isso seria a última insinuação que eu faria à higt society e aos intelectuais espalhados na residência oficial do cônsul de Portugal. Na saída, parei os olhos numa “natureza morta” e admiti que o mundo nunca foi nem será governado por ideais humanitários, mas por uma ficção social que subverte, ilude e corrompe conforme as circunstâncias políticas de cada tempo. Admiti também, pela primeira vez, que a ficção do autor ou mesmo um poema, pode ser bem mais fecundo(a) do que as análises e previsões mais realistas dos governos e das ciências humanas.
De volta ao hotel, indaguei-me se ainda é possível humanizar com palavras? As respostas não vieram, mas apenas rumores de que a consciência intelectual em um meio acéfalo, ao final é inexoravelmente inútil, conquanto os mercados e as vaidades são supremamente maiores que os ideais, assim como grandiosas são também as ações dos que fazem da nossa inquietação, quietude, e nesses entrechoques entre discurso e prática, ao invés de autores, tornamo-nos vítimas apáticas das toxinas paralisantes das convicções mais desmerecedoras.
Como o sono não vinha, resolvi caminhar um pouco e por muito tempo continuei esmagando o cérebro, sem, contudo chegar a uma conclusão definitiva do que pode ser coincidência ou acaso nas encruzilhadas da vida; e só mais tarde, quando as estrelas sumiram com a espertina do alvor, inferi que o mundo intelectual já não pode reabilitar sistemas extintos, do contrário as grandes idéias concebidas por antíteses não se extraviariam nos salões, nem no bojo das epistemes, tão facilmente como desapareciam as minhas pegadas nas areias de Ipanema com o refluxo da maré.
Hoje, dia 18 de junho de 2010, morreu José Saramago aos 87 anos, em sua casa na vulcânica ilha de Lanzarote, deixando o mundo intelectual mais pobre e um vazio imenso no íntimo de cada um de nós, seus amigos e admiradores.