Nenhuma posição no leito era de conforto, mas a sua consciência parecia resistir melhor ao caos do que o corpo em ruínas, uma ruína que aparentemente era restaurada pelo silêncio que embotava todos os olhares. Apesar de tudo, nosso poeta riu às escâncaras ao ouvir uma ironia do poeta, Carlos Augusto Viana, que acabara de se postar ao lado: “Ah se nesse saco de soro tivesse uma meiota de whisky!” Em seguida sentou-se e pediu a Aninha uma dose de Whisky antes de recitar um trecho de “A Sagração dos Ossos”, uma ode à Ivan Junqueira, quem por força do destino, dorme em sua tumba no Cemitério do Rio de Janeiro. Após um breve silêncio a voz trêmula do Carlos Augusto ecoou no quarto:
Os mortos sentam-se à mesa,
mas sem tocar na comida;
ora fartos, já não comem
senão côdeas de infinito.
Quedam-se esquivos, longínquos,
como a escutar o estribilho
do silêncio que desliza
sobre a medula do frio.
Sei de mortos que partiram
quase vivos, entre lírios
outros sei que, sibilinos,
furtaram-se às despedidas.
Eis que o Vate de Bitupitá arregalou os olhos e disse: “Aquilo a que em geral chamamos vida nada tem de comum, mesmo na mais feliz das suas expressões, como essa outra banda da vida que agora conheço e que sofro minuto a minuto, segundo a segundo! Não! Já não há minutos, já não há segundos! O tempo vai desaparecer. É a eternidade que reina, uma eternidade daninha, feita de mistérios! ”
O calor causticante das palavras incandescentes do poeta José Telles invadiram o quarto para apressar a decisão de quem estava prestes a se desvencilhar dos turbilhões caóticos do mundo opaco em que se encontrava, mas que, por uma razão indesvelável, ainda parecia rir das próprias agonias, e também dos nossos olhares ociosos, banhados de zelo, os quais, de tanta comoção, pareciam crispá-lo de energias rígidas, deprimidas, tanto que me perguntei: “De onde ele retira forças para enfrentar as turbulências existenciais e o vazio que supomos conter na alma? Como enfrentar as ameaças alucinantes diante do inexplicável, preso ao corpo que, mesmo pálido e frágil ainda ousa o prazer de um devaneio?
Para quebrar o tédio, peguei o celular e disse: “Ouça essa música, amigo Telles.” Nos primeiros acordes percebi que seus sentidos estavam bastante atentos à sintonia do repertório de Denise Emmer, musicada em elegia ao poeta Ivan Junqueira. Magdala, Aninha, Carlos Augusto e Eu, vimos que as notas musicais extraídas com suavidade das mãos delicadas da bela e exímia pianista, agiam sobre o nosso poeta como um bálsamo benigno, retirado de uma fonte inesgotável de amor, de cujo poder pacificador superou muitas vezes o da ingestão dos fármacos e das substâncias alucinógenas para conter suas dores, de cuja sensação de hilaridade produziria nas próximas horas uma felicidade ébria, absoluta, ou algo mais poderoso com o qual a vida ganharia uma conotação egocêntrica, em que todos os esforços só serviriam para acirrar o conflito da desincompatibilização carne-espírito, obviamente depois de sugerir uma paz enlanguescedora, tão frágil quanto o fio de vida que se liga às concepções mais tênues de um mundo incompreensível a um espírito generoso e circunspecto, um espírito duro e manso que permanecia atenazado na fronteira da existência por um sorriso carregado de esperanças, a requerer, de um lado, a compreensão dos amigos, e do outro, a esperada benevolência da morte.
Como nos velhos tempos em que uma ampola de Whisky inebriava os nossos sonhos, naquele quarto sufocante o poeta via os amigos inquietos, aflitos, como se cada um acalantasse o secreto desejo de vê-lo poupado na próxima agonia. Mas, apesar da náusea, ele permanecia atento a tudo, talvez porque não lhe aprazia chegar à beatitude por meios artificiais, como a beatitude dos loucos, que recebem uma calma injetável, de onde eclodem sonhos dantescos, a embriaguez misteriosa, os ideais sem nexo, até o momento em que são libertados dos sonhos sádicos das almas acrisoladas por etéreos soníferos, ou pelos mistérios que virão a possuí-los, tal como a aurora boreal possui a beleza de si mesma diante do esplendor de um poema contemplativo que surgirá no momento em que tudo parece se extinguir.
Nosso poeta já dormia com as suas glórias, mas no quarto onde a família estava, a noite de vigília seria longa. Quem o visse preso ao leito de morte, entendia a proibição surda que o impedia de comentar sobre o quanto é difícil a hora decisiva. Mas José Telles, um durão-crônico, mantinha-se impávido naquele instante singular, e parecia retirar da música de Denise Emmer a energia amena de uma prece benigna que brotara da alma de Ivan Junqueira, como se brotasse de um Ser majestoso que não cobra servidão aos vencidos no Armagedom.
Como num passo de lucidez, as alegrias que povoaram repentinamente os seus pensamentos, se entrelaçaram com as convicções de que é verdadeiramente amado por todos. Sua consciência parecia inundada de recordações e viajava nas asas dos versos proféticos, acompanhando o ritmo harmonioso que invadia seu corpo, palco de uma luta horrenda, extenuada.
Naqueles instantes lentos, os acordes finais de Denise Emmer duraram uma eternidade, ao certo, a categoria mais abrangente da totalidade. “É provável que ele tenha dito para si mesmo: “Enfim, enfim, eu amei a vida e as musas, e por amá-las tanto, tornei-me o mais cortejado dentre os poetas idealinos, ou talvez um dândi sexagenário que, mesmo sofrendo, não posso ignorar o lado doce da vida. ”
Às 14h06 desta quinta-feira, recebi a triste notícia. Larguei o prato sobre a mesa, levantei-me constrito, cravei a unha e arranquei o dia 02 de junho de 2016 do calendário. Já não havia mais nada a fazer, senão deixar o pranto escorrer enquanto eu enviava a última mensagem para o whatsapp do nosso poeta, amigo e irmão de todas as horas:
“Permita uma despedida, meu irmão Telles, se é que tu me escutas o íntimo, já que só o íntimo é capaz de traduzir a minha melancolia diante da fatalidade, esse estranho poder que vive a nos contrariar. Como bem dissestes um dia, para espanto dos amantes do delírio, um bom POETA já tem em vista o seu último verso quando escreve a primeira estrofe. Portanto, ele pode começar seu poema pelo fim e trabalhar, quando lhe agradar, em qualquer parte. É, pois, hora de recomeçar uma nova obra pelo fim, talvez o mais lícito e não menos desejado do que um poema perfumado de flores exóticas, por onde a tua essência flui com uma potência misteriosa que se entrecruza com o imperceptível e com o que aparentemente inexiste aos olhos da ciência e da moral. Não sabemos se é essa espécie de instinto poético que nos faz considerar que a sede insaciável de viver é o que nos opõe à morte e ao ignoto. Seria a finitude uma suposição, o nada absoluto para onde tudo converge, ou um ponto onde se perpetua a imortalidade das essências? Ide, meu poeta José Telles, semeando os teus poemas mais suaves sobre os campos férteis da imortalidade, e quem sabe, com a tua luz benfazeja e generosa, consiga desvelar para todos nós, seus amigos e admiradores, o que verdadeiramente se oculta por detrás desse panorama suprareal que a nossa pobre imaginação não consegue desvelar. Despeço-me com o coração constrito, repetindo o último poema que recitamos juntos, numa noite ébria de desassossego no Ideal Clube:
Baixa uma névoa viscosa
sobre as pálpebras da aurora.
E ali, de pé, sob a estola de um macabro sacerdote,
sagro estes ossos que, póstumos
recusam-se à própria sorte,
como a dizer-me nos olhos:
a vida é maior que a morte.
Ruy Câmara